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Vida das mulheres é moeda de troca no Congresso, diz médico sobre aborto

24 de novembro, 2017

por Natália Cancian

Publicado originalmente na Folha de S. Paulo

Por 40 dias, o ginecologista Jefferson Drezzet acompanhou à distância uma vigília contra o abortoem frente ao hospital Pérola Byington, em São Paulo, onde trabalha. No mesmo período, fez 40 interrupções legais de gravidez.

“Não foi de propósito. Mas não reagimos a nenhum tipo de pressão”, diz o médico, que há 26 anos coordena o principal serviço de atendimento, no SUS, a mulheres vítimas de estupro que buscam aborto permitido por lei.

Se os protestos fora do hospital não assustam, o mesmo não vale para projetos que avançam no Congresso e que visam endurecer as regras contra o procedimento.

É o caso, por exemplo, da PEC 181, aprovada em comissão especial na Câmara.

Para ele, a iniciativa, que altera a Constituição para determinar que a vida “começa na concepção”, pode colocar o Brasil na lista de países mais conservadores do mundo e aumentar o aborto clandestino. “É um projeto que prefere a mulher morta a realizar o aborto legal.”

FOLHA – O que acha de projetos que aumentam a restrição ao aborto legal?
Jefferson Drezzet – Está na contramão do resto do mundo. Se considerar os últimos dez anos em outros países, vemos uma tendência bastante clara em se praticar medidas menos restritivas em relação ao aborto. Os países desenvolvidos têm lidado com a questão de maneira a não criminalizar. Entendem que cria um ambiente de clandestinidade, em que a mulher fica sujeita a serviços de aborto sem nenhum controle.
Esse aborto em condições inseguras é responsável pela morte de 47 mil mulheres jovens a cada ano, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). Outras 5 milhões de mulheres a cada ano desenvolvem sequelas reprodutivas.
Mesmo em países em desenvolvimento, a tendência é leis menos rigorosas. Esse projeto colocaria o Brasil em um grupo pequeno de países com total criminalização do aborto em qualquer circunstância. Seria desastroso.

Quais impactos isso pode ter para as mulheres e o SUS?
Temos uma lei absolutamente clara: é direito das mulheres com gravidez decorrente de estupro interrompê-la. Mesmo assim, a insuficiência de serviços é imensa.
O Estado brasileiro já é opressor e desconsidera os direitos das mulheres, e dá um passo além obrigando a manter uma gestação contra vontade, forçada por violência sexual. É um projeto que prefere a mulher morta ao aborto legal. É gravíssimo, mostra descaso do Congresso à condição cidadã de cada mulher.
Hoje, para salvar a vida da mulher, admite-se o aborto. Em situações de estupro, admite o aborto. Nas anomalias fetais incompatíveis com a vida extrauterina, por exemplo, 90% dos países ocidentais têm leis específicas.
No Brasil, temos que solicitar ao Judiciário concessão especial. Quem paga o preço são as mulheres, e é altíssimo. Isso tem impacto no SUS, pois elas fazem abortos clandestinos, com grande capacidade de matar e sequelar. A estimativa do Ministério da Saúde é de 200 mil internações por ano por complicações de aborto.

Há mais mulheres recorrendo a serviços clandestinos?
Sim. Uma mulher de um Estado onde não tem nenhum serviço que funcione é obrigada a recorrer ao aborto clandestino ou se deslocar para São Paulo. Hoje atendo mulheres do RS, MT, PE, AM, de quase todos os Estados, e que tiveram dificuldade em ser atendidas.
E aí vem o problema: o aborto clandestino pode ser seguro ou não. Também é caro, pode ser de R$ 6.000 a R$ 10 mil. A maioria das mulheres brasileiras não tem esse recurso e acaba acessando serviços de aborto mais baratos. E quanto mais barato, menos condições de segurança e é por isso que se instala uma desigualdade social extremamente perversa.
Uma brasileira rica tem condições de fazer aborto seguro ou pode até viajar para outro país. Enquanto a preta pobre faz o inseguro, que mata uma mulher no mundo a cada 11 minutos. É um crime.

Quais os problemas para quem busca aborto legal no SUS?
A lei brasileira é de 1940, e o primeiro serviço de aborto legal foi em 1990. Ficamos 50 anos sem dar resposta para essas mulheres. Se considerar a normativa técnica do Ministério da Saúde, são 60 anos.
Tivemos avanços, mas o fato é que temos uma norma que não consegue ser cumprida por problemas de gestão. Há um discurso falacioso de que o problema do aborto legal no Brasil está centrado na objeção do médico. Não concordo. Uma pesquisa ligada à federação de ginecologia mostra que 65% dos ginecologistas acham a legislação penal do aborto restritiva demais.
O ginecologista precisa ter estrutura, ter uma equipe. É um trabalho multidisciplinar. Hoje temos Estados sem nenhum serviço. A professora Débora Diniz [UnB] fez uma pesquisa e encontrou 68 no país. Mas, quando foi verificar, a maioria não funcionava.

O que faz com que gestores não cumpram a norma?
Um dos fatores é que há um acordo extremamente forte entre o Executivo e bancadas do Legislativo. Toda questão em relação ao aborto imediatamente tem reação contundente na bancada religiosa no Congresso, com todas as ameaças possíveis, e logo em seguida há recuo do Executivo.
Sejamos claros: a vida das mulheres é moeda de troca no Congresso brasileiro. Isso impede a implementação de políticas públicas. As que temos são excelentes, mas não conseguem sair do papel.

Pedro Ladeira/Folhapress
Parlamentares contrários e à favor das novas medidas para o aborto discutem antes do início de sessão
Parlamentares contrários e à favor das novas medidas para o aborto discutem antes do início de sessão

O sr. tem sofrido pressão?
Vou ser honesto: não me importo com nenhum tipo de pressão. Do outro lado da rua temos uma praça, e de vez em quando tem alguma manifestação. Esses dias teve um grupo de senhoras que ficou 40 dias em vigília contra o aborto. Por coincidência, fizemos 40 abortos nesses 40 dias, não foi de propósito. As pessoas têm direito de pensar diferente e até de pensar coisas horrorosas a nosso respeito. Mas tem outra pressão: a de demanda pelo serviço. Este ano já passamos os casos do ano passado. Foram 290 até outubro.

Como é o atendimento no Pérola Byington?
Todas passam por no mínimo quatro setores: ginecologista, assistência social, psicólogo e enfermeiro. Há uma razão para assistência social, por exemplo: mulheres que além de grávidas do agressor estão ameaçadas de morte.
Já quando falo de psicólogo, imagina uma mulher que sofreu violência e está grávida. Para se ter uma ideia, 25% das que atendemos têm reações suicidas persistentes.
Também é preciso uma ultrassonografia para verificar a data de violência e o tempo de gravidez, e se não extrapolou o limite para o aborto, que é de 20 semanas, ou 22 se o peso fetal for menor que 500 gramas. A partir disso a equipe discute e aprova ou não.

Qual o perfil das vítimas de violência sexual atendidas?
A única coisa em comum é o profundo sofrimento. Não há um perfil único. Mas o que predomina são jovens. Cerca de 30% dos casos são adolescentes. Temos um mapa grande de grávidas de agressores desconhecidos, normalmente abordadas em espaço público.
Mas não deixamos de ter muitos casos de mulheres violentadas pelos parceiros íntimos. Cerca de 170 de 2.000 casos são nessas circunstâncias, principalmente quando termina a relação. Temos também em torno de 200 casos de gestações por incesto.

Há casos recusados?
Sim. O principal motivo é chegar acima do tempo de gravidez onde tecnicamente é possível [o aborto].

A 1ª turma do STF decidiu que aborto até o 3º mês de gravidez não é crime. O que achou?
Foi um caso específico, não dá para dizer que a partir dela pode-se fazer a interrupção. Mas os argumentos apresentados pelo ministro Barroso são os que na ciência já admitimos e que gostaríamos que fossem considerados para descriminalização. A descriminalização não necessariamente aumenta sua prática.

RAIO-X

FORMAÇÃO
Médico, com residência em ginecologia pela Unicamp e doutorado em ciências da saúde pela Faculdade de Medicina do ABC

CARREIRA
No Pérola Byington desde 1991, é coordenador do núcleo de violência sexual e aborto legal; também é professor-assistente da Faculdade de Saúde Pública da USP

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Entenda o caso

Por que o aborto está sendo discutido hoje na Câmara?
No dia 8 de novembro, uma comissão especial aprovou uma primeira versãoda PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 181, que amplia a licença-maternidade para mães de prematuros. No texto, porém, foi incluído um artigo que estabelece constitucionalmente que a vida começa na concepção. Isso poderia barrar o aborto no Brasil mesmo em casos hoje legais. O texto foi aprovado por 18 votos a 1.

Quem incluiu o artigo?
A mudança é patrocinada pela bancada evangélica. A comissão especial, dominada por parlamentares religiosos de diversos partidos, foi constituída como uma espécie de retaliação à decisão da primeira turma do STF, que decidiu em 2016 que aborto até os três meses de gestação não é crime. A comissão é presidida por Evandro Gussi (PV-SP) e tem como relator Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), ambos membros da Frente Parlamentar Evangélica.

O que diz a lei hoje?
O aborto é legal no Brasil em casos de estupro e risco de morte para a mãe. O STF também já decidiu que o aborto de fetos anencéfalos não é crime.

É possível mudar a legislação? Como?
Ao incluir que a vida começa na concepção no texto constitucional, a PEC pode inviabilizar o aborto mesmo nos casos legais, porque a Constituição se sobrepõe às demais leis.

Há chances políticas para essa mudança?
É pouco provável que a proposta seja sequer votada no plenário da Câmara, já que o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já afirmou que não irá pautá-la. Mesmo que fosse para votação, precisaria ser aprovada em dois turnos com 308 votos –o que líderes partidários já disseram achar difícil– e ainda teria que ser votada outras duas vezes no Senado. Como é uma PEC, não seria necessária sanção presidencial.

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