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Publicado originalmente na Época
Como intelectual acadêmica, tenho uma área de especialização e é sobre ela que gostaria de convidá-lo a uma conversa amigável. Sei que gosta dos temas com que trabalho, em particular a questão do aborto. Cada um terá seu tempo de apresentação, podemos ter réplicas mútuas, seremos gentis e falaremos a verdade. Para facilitar a participação da audiência, sugiro que um grupo independente de checadores de informação acompanhe nossa conversa. Nossos argumentos serão postos à prova no instante em que forem ditos. Nesses tempos de mentiras e notícias falsas, ofereceremos um momento de celebração à verdade.
Li suas postagens em que desdenha das universidades e dos professores, em que expressa suas inquietações sobre o que seja a vida universitária. Tive dúvidas sobre onde teria estudado, pois talvez fosse testemunho do seu tempo ou de sua experiência acadêmica. Busquei seu currículo na Plataforma Lattes, mas não o localizei. A publicidade da trajetória acadêmica foi uma conquista de transparência da ciência brasileira — o currículo Lattes não é como orelha de livro comercial ou postagem de mídia social em que cada um se adjetiva como bem quer.
No currículo Lattes, está a prova do que ousamos pronunciar como ciência. Se der uma espiada no meu currículo, verá que falo sobre aborto porque já fiz pesquisas, publiquei artigos e ganhei prêmios. Arrisco dizer que sou reconhecida na comunidade acadêmica internacional. Como tudo na ciência, até esse deslize de adjetivo no texto preciso comprovar. No meu caso, reconhecimento pode ser o prêmio Jabuti concedido ao meu livro sobre a epidemia de Zika no Brasil ou a recente homenagem da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard.
Como não localizei artigos de sua autoria na Biblioteca Scielo ou em qualquer outra base de periódicos científicos internacionais, desconheço os fundamentos de seus argumentos. Para ser sincera, ignoro sua área de especialidade, soube que foi astrólogo, define-se como filósofo e que oferece cursos nas mídias sociais. Peço perdão, mas meu conhecimento de astrologia é limitado, por isso o convido a falar sobre aborto — um tema que nos exige conhecimento de diversas áreas, da filosofia à saúde, da sociologia à história.
Todos temos opiniões sobre vários eventos da vida. Nossas opiniões permitem que nos aproximemos de algumas comunidades e nos afastemos de outras. Opiniões, no entanto, não são argumentos acadêmicos. Para ser um intelectual acadêmico é preciso se submeter ao método científico de busca da verdade. Quando publico um artigo em periódico científico, me submeto ao julgamento de colegas que desconheço, recebo pareceres de avaliação de minhas ideias, torno públicas as razões de minhas teses. É certo que nem todo escritor é cientista; um exemplo são os ficcionistas, escrevem o que imaginam, inventam histórias. Não sei se este é seu caso, mas se o for, não poderia chamá-lo de pesquisador acadêmico. Escritor é já um título honroso.
Não sei se já aplicou o método científico aos seus argumentos. Se não, valeria o experimento para o que alardeia sobre as universidades. Parta de suas crenças como hipóteses, submeta-as ao teste científico — se crê haver “bolinação” e “drogas” em sala de aula, monte um protocolo de pesquisa, colete evidências, escreva um artigo, publique em um periódico. Só aí discutiremos seus argumentos. Antes disso, suas ideias são como opiniões de gente de bem ou fantasias de ficcionistas. Mas até para ser um professor, recomendaria aprimorar seus métodos.
Um professor duvida de suas teses, estuda antes de ensinar, aprende com a comunidade acadêmica. Nem todo professor é escritor, mas os intelectuais acadêmicos são escritores e professores. Ensinam e escrevem, defendem teses de doutorado e mestrado. Também não localizei seus memoriais acadêmicos para os títulos da carreira acadêmica, se é que os têm. Minha dissertação de mestrado e minha tese de doutorado estão disponíveis em diversas bases virtuais. É certo que se pode ser um escritor e professor, sem títulos acadêmicos formais ou mesmo sem experiência universitária. Já conheci pessoas assim, algumas admiráveis, é verdade: elas sabiam sobre marés, ventos, chuva e sol, aquilo que chamamos de conhecimento empírico em contraste ao método científico. Paulo Freire se encantava com os mestres empíricos da vida rural. Gurus e magos são outros que parecem ter este tipo de conhecimento. Eu precisaria estudá-los para dizer com precisão o que fazem ou o que faz alguém crer neles.
Se meus temas de pesquisa forem árduos para um debate, eu posso ajudá-lo na revisão da literatura, um passo fundamental à argumentação científica. Como intelectuais acadêmicos, antes de nos pronunciarmos sobre algum tema, passamos um bom tempo revisando a literatura, isto é, o que já foi pesquisado e publicado sobre um tema. Verá que sou uma das principais autoras sobre aborto no Brasil, por isso, posso facilitar seu esforço de revisão da literatura indicando algumas referências. Como usei outro adjetivo, preciso justificá-lo pelo rigor acadêmico – dê uma olhada no número de citações aos meus artigos ou no fator de impacto dos periódicos em que publico. Deixo uma dica para esta fase de leitura intensa: use um gerenciador de bibliografia, senão poderá se perder nas notas. O risco de notas soltas é plagiar ideias alheias, algo desagradável a um intelectual acadêmico.
Aceite meu convite como uma honra ou como um desafio. Aborto é uma questão de saúde pública no Brasil. Mulheres comuns fazem aborto, esta não é minha experiência nem a sua, por isso falaremos em nome da ciência. Pode ser a ciência dos números ou a do testemunho, a epidemiologia ou a antropologia. Quanto mais conversarmos sobre o tema mais as pessoas se informarão, pois os checadores da verdade qualificarão nosso debate. Essa poderá ser uma experiência transformadora, inclusive para que possa abandonar o uso das aspas no título “intelectual acadêmico” e, quem sabe, usá-lo para si próprio sem transformá-lo em citação.