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UM MUNDO MAIS FEMINISTA?

13 de maio, 2020

Para antropóloga, pandemia impactou como nos relacionamos, quem somos e como nos (des) humanizamos

Por Debora Diniz

Publicado originalmente no do ECOA UOL

A verdade é que não sabemos; estamos como em um estágio intermediário de um rito de passagem — não mais como antes, mas ainda distantes do que surgirá depois dessas semanas de estranha suspensão do que conhecíamos como normalidade da vida.

Não quero me portar como os homens sabidos que sobem aos palanques e fazem projeções sobre a política ou o mercado financeiro, como se o acaso pudesse ser controlado. Acertam algumas vezes, mas erram muito. Há sempre o risco de um “cisne negro” atravessar a realidade que só conhecia “cisnes brancos”, para seguir a alegoria de Nassim Taleb sobre a fragilidade das análises sobre o funcionamento do mercado financeiro.

A pandemia de Covid-19 é como um “cisne negro” em um universo em que se conheciam apenas “cisnes brancos”: não estava prevista e poucos são os recursos prévios que dispomos para controlar os efeitos da crise econômica e de saúde pública na vida das pessoas comuns.

De onde surge minha hipótese de que a pandemia pode fazer circular valores feministas silenciados pelo patriarcado? Do desamparo da sobrevivência. Vivemos o desamparo pela desorganização das normas sociais, uma experiência afetiva que pode ser produtiva sobre formas alternativas de sobrevivência. “Estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que me despossui dos predicados que me identificam”, diz Vladimir Safatle.

Os meus predicados são como testamentos e aquisições — se sou mulher em uma cultura machista, sou mulher branca em uma sociedade colonial racista; se sou latina imigrante nos Estados Unidos, onde morrem mais latinos que brancos de Covid-19, sou uma latina de cor discreta e com trabalhos protegidos porque pouco essenciais à sobrevivência da humanidade. Poderia ampliar a lista de meus predicados, desde os mais significativos para uma vida justa em que os corpos são a matéria das desigualdades, até os mais insignificantes, talvez, descritos como preferências pessoais.

Os nossos predicados são como nossas identificações, ou seja, marcadores sociais que nos antecedem e nos acompanham nas relações sociais. A pandemia de Covid-19 escancarou como os predicados embrenhados nas desigualdades sociais, como raça, gênero, idade ou classe, determinaram nossa maior ou menor capacidade de proteção ao adoecimento ou à morte.

Foi da interseccionalidade entre os predicados, ou da encruzilhada de nossos corpos, segundo a alegoria de Carla Akotirene, que a pandemia desamparou desigualmente os corpos — alguns vivenciaram o estranhamento da perda de privilégios; outros a iminência do abandono ao desemprego, à fome ou ao adoecimento. Se há um caráter universal na experiência do desamparo, pois todos fomos provocados pela suspensão da normalidade da vida, nem todos vivemos os efeitos da anomia da mesma maneira.

É do desamparo que exploro a possibilidade de maior circulação de valores feministas pós-pandemia. E quais são eles? O cuidado e a interdependência, somente para citar dois deles que estiveram no centro do dobramento entre crise econômica e de saúde pública. A garantia de medidas de contenção da pandemia, como isolamento de pessoas doentes ou fechamento de escolas para crianças, depende de uma ordem invisível à sobrevivência social.

Uma pessoa doente necessita de uma cuidadora, uma cuidadora é uma mulher que move o trabalho do cuidado ou é uma mulher fora do mundo do trabalho. As proporções de adoecimento da pandemia, em particular com a pausa imposta à economia das circulações públicas das pessoas e bens, escancarou como somos seres interdependentes e sobreviventes pelo cuidado. Não à toa pacotes de proteção social estiveram no centro das respostas oferecidas pelos países.

Cada pessoa viveu o desamparo desde seus corpos e respectivos privilégios ou vulnerabilidades da sobrevivência — mulheres com trabalhos essenciais, como as caixas de supermercado ou cuidadoras de idosos em asilos, mantiveram suas rotinas de vida com agravantes de risco e necessidades domésticas de cuidado pelas crianças fora da escola; mulheres da elite encastelaram-se no teletrabalho, descreveram seus aprendizados para a rotina doméstica, algumas exibiram suas mãos destreinadas para a faxina como um troféu de sobrevivência. Eu poderia falar dos homens, mas prefiro pensar no desconcerto do desamparo vivido pelas mulheres, pois é de nós que a efervescência da criação pode ser mais transformadora. Nem toda mulher se entende como feminista, e nem espero que a pandemia provoque um arrebatamento de consciência.

Esse é meu ponto de partida e de chegada: reconheço um potencial produtivo na desorganização da vida social, mas a transformação feminista não é uma consequência espontânea do vivido pela pandemia. A experiência de confinar-se à casa, separar-se de familiares, vestir máscara para sair à rua ou ter medo de adoecer provoca um estranhamento do que descreveríamos como “vida normal”, isto é, a naturalização das normas sociais.

Dos mais privilegiados aos mais vulneráveis socialmente, os efeitos da pandemia na vida social impactaram como nos relacionamos, quem somos e como (des)humanizamos uns aos outros. O desamparo é como uma ferida ética que pode nos esfoliar a pele por um tempo longo, ou pode ser esquecida pelas vantagens dos privilégios que nos impõem antolhos para o real. Importa saber o que faremos com essa ferida — a mim, interessa aprofundar a ferida de tal maneira que os valores feministas sejam parte da ética da vida comum para uma política justa para os corpos.

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