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Um ano da decisão chilena sobre aborto: lições para as Cortes vizinhas

27 de agosto, 2018

Experiência chilena ofereceu à região forte precedente para desenvolvimento de novas discussões sobre aborto

por Gabriela Rondon e Sinara Gumieri

Publicado originalmente no Jota

No último 21 de agosto completou um ano que o Tribunal Constitucional do Chile deu um passo importante para reverter a proibição total ao aborto no país. A Corte confirmou a constitucionalidade da legislação que permite o aborto legal em três casos: quando a vida da mulher está em risco, quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto, e quando há uma condição fetal fatal. A decisão é uma vitória histórica dos movimentos de mulheres do Chile, que há 28 anos lutavam para anular a lei penal da ditadura de Augusto Pinochet.

A proibição total ao aborto poderia impor, por exemplo, até cinco anos de prisão para uma mulher que interrompesse a gravidez de um feto inviável ou a um profissional de saúde que realizasse o aborto em uma menina de 10 anos vítima de estupro. A decisão do Tribunal é, sem dúvida, um ganho para a consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos na região – e para os direitos humanos de forma mais ampla. Mas há duas lições da experiência chilena que merecem atenção especial: uma para ser aprendida e outra para ser superada.

A lição a aprender é o entendimento de que a garantia da “proteção da vida que está por nascer”, presente no artigo 19, n. 1, segunda sessão, da Constituição chilena não é incompatível com o direito das mulheres de decidir sobre a interrupção de uma gravidez.

A corte afirma que não pode se pronunciar sobre o status ontológico da vida não nascida, uma vez que esta não é uma questão constitucional: é uma que evoca perspectivas variáveis e incomparáveis, incluindo a metafísica e a religião, que excedem o que o judiciário pode resolver.

Por essa razão, o voto majoritário faz questão de se referir apenas à interpretação legal desta disposição: deveres de proteção pela lei são diferentes do reconhecimento constitucional da personalidade. A corte assume que a Constituição afirma um importante interesse legal em proteger a vida potencial, mas essa proteção não é comparável nem proporcional à proteção da “vida de uma pessoa com plena capacidade, isto é, uma mulher ou uma mãe com um projeto de vida que está em pleno desenvolvimento no mundo, no meio social e familiar”.

De acordo com a corte chilena, a “gravidade e drama” das três circunstâncias abrangidas pelo projeto de lei justificam a maximização da proteção do direito constitucional das mulheres à vida e, portanto, não violam injustificadamente o interesse legal de proteger a vida potencial. O dever de proteger vida futura pode e deve ser circunscrito pelo dever de proteger os direitos fundamentais da pessoa constitucional em questão, a mulher grávida. Esse entendimento também está alinhado, por exemplo, à jurisprudência constitucional brasileira que, em duas importantes decisões do Supremo Tribunal Federal – a decisão de 2008 na ADI 3510 sobre o uso de embriões congelados em pesquisas com células-tronco e a decisão de 2012 na ADPF 54 sobre o aborto em casos de anencefalia – confirmou que embriões e fetos não viáveis não possuem status legal como pessoas constitucionais. Esse diálogo entre cortes é importante para a construção de um quadro regional coerente em relação aos direitos fundamentais que estão em jogo na questão do aborto.

Por outro lado, a decisão chilena também apresenta uma lição a ser superada. A nova lei inclui uma cláusula de objeção de consciência que permite aos médicos a recusa a realizar abortos legais se acreditarem que realizá-lo violaria suas crenças religiosas ou morais. Originalmente, a lei proibia explicitamente a objeção de consciência às instituições. No entanto, a corte determinou que essa proibição era inconstitucional, porque violaria a “liberdade de associação” e a autonomia de organizações. O tribunal presume que associações também têm direito à proteção da liberdade de pensamento e devem poder oferecer cuidados de saúde por critérios confessionais.

O que os ministros chilenos não parecem ter previsto é que permitir a objeção de consciência institucional é permitir a discriminação institucional. As instituições de saúde, como qualquer outro ator privado que presta serviços que realizam direitos sociais, não podem ter autonomia irrestrita a ponto de desrespeitar direitos humanos básicos. Os atores institucionais privados são responsabilizados pelas mesmas normas constitucionais e obrigações internacionais de direitos humanos que os atores institucionais públicos. Não permitiríamos que nenhuma instituição de saúde invocasse crenças religiosas para se recusar a realizar uma transfusão de sangue para um paciente.

Embora a objeção de consciência já seja um tema sensível quando diz respeito a indivíduos, ao menos nesses casos pode haver acomodações sob regulamentos cuidadosos, especialmente se houver uma maneira de encaminhar a mulher para outro profissional e garantir que não haja atrasos ou obstáculos ao serviço. Mas a negação de toda uma instituição não permite acomodação: é a rejeição da responsabilidade em relação às necessidades essenciais de saúde de outros. Ao extremo, é a recusa da sua própria missão constitucional de fornecer cuidados em saúde a quem deles necessitar.

A decisão do tribunal já permitiu o avanço da desregulamentação da objeção de consciência. Em dezembro de 2017, o governo chileno estabeleceu uma série de exigências formais, incluindo, por exemplo, que instituições privadas que tivessem acordos com o governo para prestar serviços ginecológicos não podiam se opor a fornecer abortos legais. No entanto, após a transição presidencial e a pressão de instituições que procuravam se eximir de cumprir a lei, o governo publicou um novo protocolo que eliminou essas restrições e autorizou que instituições negassem o serviço de aborto e outros relacionados. Isso é particularmente preocupante se considerarmos que instituições privadas no Chile recebem financiamento significativo do governo para fornecer serviços essenciais de saúde. Nessas condições, a desregulamentação permite que instituições recebam verba do Estado para oferecer cuidados de saúde discriminatórios. No limite, isso pode significar que as mulheres chilenas terão seu direito garantido pela lei, mas não pelos serviços que poderiam acolhê-las.

O caminho do litígio em direitos humanos, especialmente do litígio sobre direitos sexuais e reprodutivos, quase nunca é linear e frequentemente envolve inconsistências e contradições.

O Tribunal Constitucional chileno ofereceu um exemplo complexo de como isto acontece: por um lado, reforçou a centralidade dos direitos das mulheres numa democracia constitucional e, por outro lado, abriu as portas para o possível enfraquecimento do seu cumprimento no que diz respeito ao acesso a serviços essenciais . Nenhuma interpretação unilateral dessa decisão é suficiente para o debate. O que é inegável é que a experiência chilena ofereceu à região um forte precedente para o desenvolvimento de novas discussões sobre a questão do aborto – seja em lições a serem aprendidas ou a serem superadas.

 

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