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Um ano após debate público, projetos tentam dificultar aborto no Brasil

6 de agosto, 2019

Ação no STF pedindo descriminalização da prática até a 12ª semana de gravidez está parada desde agosto de 2018

Ana Paula Blower, André de Souza e Flavia Martin

Publicado originalmente no Globo

RIO e BRASÍLIA — Há um ano, o aborto estava na pauta do dia. A interrupção voluntária da gravidez era tema de uma audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal ( STF ) para discutir a descriminalização do procedimento até a 12ª semana.

Nela, que ocorreu nos dias 3 e 6 de agosto, representantes de entidades, inclusive religiosas, ativistas e especialistas de diversas áreas participaram com argumentos contra e a favor.

Desde então, ao menos 19 projetos de lei foram protocolados na Câmara e no Senado com o objetivo de restringir mais ou dificultar o acesso ao aborto, mesmo quando ele já é previsto em lei — em caso de estupro , feto anencéfalo e risco de vida para a mulher . Além disso, 365 dias depois da segunda parte da audiência, ainda não há data para que o assunto volte à Corte.

Desses 19 PLs, 16 foram apresentados em 2019 e dois arquivados. Além dos novos, há outros 28, incluindo a PEC 29, conhecida como “PEC da Vida”, que foram desarquivados no início do ano.

Ao todo, são ao menos 45 projetos no Congresso que buscam restringir direta ou indiretamente o aborto . O levantamento é da campanha “Nem presa nem morta”, formada por grupos, organizações e ativistas pelos direitos das mulheres .

A audiência pública de 2018 foi convocada pela ministra Rosa Weber para discutir a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 (ADPF), da qual ela é relatora, protocolada pelo PSOL e pela Anis — Instituto de Bioética em março de 2017.

Na ação, que pede a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, argumentam que os artigos 124 e 126 do Código Penal — que instituem a criminalização da interrupção voluntária da gestação — não estão de acordo com as garantias individuais previstas na Constituição.

Os autores da ação alegam também que certos direitos das mulheres previstos em lei são, hoje, violados diretamente pelo Código Penal, como direito à cidadania, à dignidade, à vida, à igualdade, à liberdade, à saúde e ao planejamento familiar.

Não há perspectiva de o STF julgar ainda este ano a ação. A ministra Rosa Weber sequer liberou o caso para análise do plenário. E, quando fizer isso, será necessário ainda que o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, marque uma data de julgamento. Ele já definiu a pauta da maioria das sessões do segundo semestre e a tendência é que não venha a incluir a questão do aborto.

Além da ação relatada por Rosa Weber, há outra com a ministra Cármen Lúcia, de alcance mais limitado: uma mulher pode abortar quando tiver zika, que provoca microcefalia. Em parecer apresentado em 2016, o então procurador-geral da República Rodrigo Janot opinou que, sim, por entender que obrigar a mulher a continuar com uma gestação nessa condição equivale a um ato de tortura.

Em setembro, Cármen Lúcia liberou o processo para julgamento no plenário. Poucos dias depois, assumiu a presidência, mas não chegou a marcar a data para analisar a ação. Em dezembro de 2018, Dias Toffoli, que sucedeu Cármen na presidência do STF, marcou o julgamento para 22 de maio de 2019. Mas, em 9 de maio, retirou a ação da pauta.

‘Retrocedemos’

Luciana Boiteux, advogada que assina a ação, pesquisadora, professora da UFRJ e atualmente suplente de deputada federal pelo PSOL-RJ, acredita que dificilmente o assunto voltará à pauta da Corte, por estarmos em um momento político “não só conservador, mas antifeminista”.

Por outro lado, ela acredita ser pouco provável que esses projetos de lei “andem”. Boiteux afirma que, em sua maioria, eles são “radicalizados e desonestos”.

— Não é um bom momento. Acho que retrocedemos de um ano para cá em termos de possibilidade de um debate honesto. Hoje, o que se tem é uma ameaça de retrocesso, mas é importante dizer que esses PLs já vinham antes, e essas ameaças vêm de muitos anos — pontua. — Precisamos de um debate franco, com pluralidade de vozes, como ocorreu na audiência, levando em conta a realidade das mulheres . Mas é um momento difícil, de radicalização e negação de direitos.

A advogada diz defender os resultados que mostram experiências da descriminalização em outros países, como a redução da mortalidade materna . No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, o aborto é uma das principais causas desse tipo de óbito.

— Esse debate (sobre aborto) tem que ser feito com o caráter de direitos humanos, respeito, mas também como questão de saúde pública. E saúde pública se mede com evidência, dados de pesquisa. Defendemos a conscientização da sociedade sobre a importância do direito das mulheres ao aborto , chamando a atenção para as consequências nefastas da manutenção da criminalização — conclui.

Papel do STF é questionado

Presidente da bancada da bala, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) é autor de quatro dos novos projetos de lei sobre o tema. Com eles, pede um endurecimento do Código Penal para quem faz o procedimento — caso seja sem o consentimento da gestante, por exemplo, ele propõe de dez a 20 anos de reclusão.

— (Atualmente são) Penas muito brandas, no nosso entendimento, para quem comete ou induz o aborto . A ideia é justamente inibir a quantidade (de abortos) que é feita no Brasil — explica o parlamentar, que considera uma “aberração por parte do STF legislar em cima de um tema de uma área que não é deles”.

Vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo, que participou da audiência pública do ano passado, Paulo Henrique Cremonezi também questiona o protagonismo do Supremo na discussão.

— Só quem pode decidir é o Poder Legislativo. Já houve uma decisão recente (a criminalização da homofobia) equivocada. Mesmo se fosse sobre um interesse meu, por exemplo uma situação de “cristofobia” (ataques a cristãos), eu contestaria. Do jeito que se deu, não há harmonia entre os três poderes. Por mais qualificados que sejam, 11 ministros não podem fazer o papel de 500 deputados nem de 180 milhões de brasileiros — afirma ele, que se situa contra a descriminalização do aborto (“como cristão, seria esquizofrênico defender a interrupção da vida”).

Para a antropóloga Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, garantir direitos assegurados na Constituição, como de liberdade, é uma dívida histórica com as mulheres no país. E, por isso, retomar o debate em torno do aborto , reforçando argumentos trazidos na audiência, é essencial no contexto atual.

— Isso porque, entre outras razões, o que tem prevalecido nos debates públicos são as visões contrárias à premissa de que autonomia sexual e reprodutiva é um componente inegociável das democracias — diz. — Hoje, quando existe no Congresso uma proposta de emenda constitucional para garantir direito à vida desde a concepção, que restringe ainda mais o acesso ao aborto , é ainda mais importante resgatar esses argumentos como parâmetros de uma sociedade democrática.

‘Ganho consolidado’

Para a advogada Gabriela Rondon, do Instituto Anis, a audiência pública deixa um legado importante de qualificação do debate sobre aborto no país, o que, segundo ela, permanece como “um ganho consolidado”, trazendo para a sociedade opiniões diversas e com embasamento científico sobre o tema.

Mesmo sem previsão de quando o assunto volta ao supremo, ela acredita que não será esquecido.

— Houve uma vitória muito importante que precisa ser consolidada. Na ocasião (audiência pública), o debate foi pautado por evidências confiáveis de saúde pública e narrativas sobre como a lei impacta a vida das mulheres , com diferentes perspectivas, de forma interdisciplinar, com a participação da medicina, antropologia, do campo religioso — lembra Rondon.

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