Por Gabriela Rondon
Publicado originalmente no portal JOTA
Em três de agosto de 2018, o cair da tarde em Brasília encerrava o primeiro dia de audiência pública sobre a ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal, em que especialistas apresentavam teses e dados sobre a possibilidade de descriminalização do aborto no país. Em três de agosto de 2019, o cair da noite no Hospital Municipal de Santarém, no Pará, trazia a confirmação da morte da adolescente Katherine da Silva Ferreira, de 16 anos, por complicações de um aborto inseguro. Um ano separa os dois episódios, mas quase nada além disso. O contexto da morte de Katherine é uma trágica repetição e confirmação das evidências apresentadas por expositores à corte. A lei penal estigmatiza, retarda ou impede o tratamento em saúde, e mata.
Desde a audiência no Supremo, não houve mudanças legais no tema, mas muito se falou sobre direitos sexuais e reprodutivos nos outros poderes da República. O novo governo de Jair Bolsonaro elegeu o gênero como um dos centros de ataque de sua política, expressa desde o campo da educação até as relações exteriores. O chanceler Ernesto Araújo alinhou a posição oficial do Brasil aos países que orientam a retirada dos termos “gênero” e “saúde sexual e reprodutiva das mulheres” de resoluções internacionais, mesmo quando os temas tratados são casamento infantil ou violência sexual. Na apresentação de candidatura à reeleição do Brasil no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, as prioridades do país foram descritas pelo presidente como “fortalecimento das estruturas familiares e exclusão das menções de gênero”. Não é claro a que problemas concretos de direitos humanos se refere o “fortalecimento de estruturas familiares”, além de uma pauta moral para rejeitar a diversidade. A certeza é que a cruzada para ignorar gênero como fator de desigualdade serve a que sigamos sem entender, nem resolver, o problema das meninas como Katherine que morrem por causas evitáveis.
No legislativo, a mesma insistência na pauta moral desconectada de evidências em saúde levou a uma tentativa de embate direto com o Supremo Tribunal Federal em torno ao agendamento da ADI 5581, que trata da reparação de direitos violados pela epidemia do vírus zika. Seminários na Câmara dos Deputados atacaram a possibilidade de descriminalização do aborto para mulheres em sofrimento mental pelos efeitos do vírus – distorceram o pedido feito na ação constitucional, como se tratasse de aborto em caso de microcefalia, e ignoraram as outras quatro demandas de proteção a direitos sociais de que a ação também trata. Em um contexto político hostil, o caso pautado para maio de 2019 foi retirado da agenda da corte. Os mesmos deputados que questionaram a legitimidade do Supremo para decidir sobre a proteção às vítimas do zika não apresentaram qualquer solução alternativa para as mulheres e crianças que seguem sem acesso a benefícios sociais a que têm direito e enfrentando múltiplas barreiras para conseguir atendimento nos serviços de saúde especializados. Bastou declarar-se a favor da vida por bordão.
Quando determinam que pautas de gênero são “ideológicas”, o que fazem os partidários do atual governo é obscurecer ameaças concretas à vida e à saúde de populações vulneráveis. A morte de Katherine não é ficção, teoria ou ideologia. Há indícios de que a adolescente era violentada pelo seu padrasto, que foi quem a abandonou no hospital já com feto morto retido, febre e hemorragia. Não foi possível salvar sua vida, mas mais que isso, tampouco foi possível protegê-la do caminho de abandono que a levou até ali. A demanda por proteção aos direitos sexuais e reprodutivos não se restringe nem se encerra com o tema do aborto – e a audiência pública de 2018 deixou isso claro. Descriminalizar o aborto é apenas uma pequena mas fundamental peça para que a sexualidade e a reprodução deixem de ser temas regulados por punição e cadeia, e passem a ser temas prioritários de cuidado em saúde. No passado, já aprendemos como fazê-lo ao encarar a epidemia de HIV/Aids como uma questão de saúde pública que exige enfrentamento integral pautado na não-discriminação. É o mesmo que se exige agora. Adolescentes de 16 anos como Katherine merecem viver em um país em que haja educação sexual nas escolas, para que possam identificar se sofrem violência. Meninas como Katherine merecem chegar à idade adulta para decidir sobre seus projetos de vida, maternidade e família. Só poderão fazê-lo se sua vida não estiver ameaçada por leis discriminatórias.
Em conversa com senadores esta semana, no entanto, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, teria dito que “não gostaria de pautar ações sobre aborto”, em aceno que agrada à maioria legislativa. O verbo de desejo expressa a substituição dos parâmetros republicanos do controle de constitucionalidade por juízos privados de composição entre os representantes dos poderes. Não é esse tipo de diálogo institucional que se espera seja promovido pela corte. Diante do persistente descrédito dos braços políticos do poder à linguagem de direitos humanos consolidada internacionalmente e à ciência, exige-se com ainda mais relevância o papel de independência do poder judiciário para a proteção de direitos fundamentais de minorias. Se a morte de meninas e mulheres como consequência de uma lei não é um tema de urgência de violação de direitos fundamentais, é difícil entender o que seria.
Não há dúvidas de que o ano de 2018 na Suprema Corte foi de coragem para mover o debate público em tema moral sensível. Em 2019, esperamos que a coragem se mova para honrar a necessária independência exigida não só pelo tempo histórico, mas pela própria Constituição. O obscurantismo político não pode dominar a Corte, nem orientar a traição à sua mais nobre função.