por Gabriela Rondon
Publicado originalmente no Jota
Não era inesperado nem é estratégia nova. Na mesma noite em que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal sinalizou a possibilidade da descriminalização do aborto nos primeiros três meses de gestação, a bancada fundamentalista da Câmara dos Deputados anunciou criar comissão “para reverter decisão do Supremo”. O presidente da Casa declarou justificativa: “toda vez que nós entendermos que o Supremo legisla no lugar da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional, nós deveríamos responder ou ratificando ou retificando a decisão do Supremo, como a de hoje”. Sabemos que não é racionalidade jurídica que guia os discursos parlamentares, mas é preciso apontar os equívocos desse anúncio. O STF não legislou na decisão sobre aborto, não houve violação à separação de poderes.
O primeiro equívoco é básico: na realidade, a decisão da Corte não provocou nenhuma alteração legislativa imediata. O debate aconteceu em julgamento de habeas corpus e o que se decidia era a possibilidade de liberdade provisória para cinco réus acusados de trabalhar em clínica para realização de abortos em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Por unanimidade, a turma entendeu que não estavam presentes os requisitos para manutenção da prisão. O argumento sobre a inconstitucionalidade da criminalização do aborto surgiu como mais um dos elementos a justificar a soltura: se a conduta acusada nem mesmo for crime, menos razão ainda subsiste à prisão provisória. Mas a decisão foi simples: os réus foram soltos. E não há isso de parlamento revogar decisão de habeas corpus.
Mas mesmo que a decisão de fato pudesse descriminalizar o aborto no país, não haveria nenhuma usurpação de funções do poder legislativo, pelo contrário: representaria apenas o correto exercício de guarda da Constituição pelo STF. O deputado Evandro Gussi se espantou, clamando que “revogar o Código Penal, como foi feito, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito”. Mas engana-se, ou esqueceu de revisar quais são as funções de uma corte constitucional. Declarar a inconstitucionalidade de leis, apontando sua incongruência com os princípios que regem nosso Estado democrático, é precisamente uma de suas funções principais. Se há alguma confusão sobre separação de poderes nessa conversa, é justamente essa: os deputados pretenderem argumentar que o Supremo não decida matérias de inconstitucionalidade porque caberia ao Congresso Nacional definir a lei penal. Sim, o parlamento edita leis, mas não há isso de fazer leitura reversa: é a Constituição que determina a interpretação do Código Penal, não o contrário.
No voto do ministro Luis Roberto Barroso, que guiou a decisão no habeas corpus de Duque de Caxias, a lista de direitos e princípios violados pela criminalização do aborto fica clara: impor a uma mulher a manutenção de uma gravidez viola os direitos sexuais e reprodutivos, o direito à autonomia, o direito à integridade física e psíquica e o direito à igualdade em duas dimensões: a igualdade de gênero, levando-se em consideração a desigualdade frente à liberdade reprodutiva dos homens, não submetidos à paternidade compulsória, e a igualdade livre de discriminação de classe, ao se considerar que a criminalização tem um efeito desproporcional sobre as mulheres pobres. Se por um lado a incompreensão sobre o que significou a decisão do habeas corpus precisa ser desfeita, por outro, o acerto de seus argumentos precisa ser anunciado como decisão correta em controle de constitucionalidade. É o que esperamos que a Corte possa fazer em breve.