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STF, aborto e a negação dos direitos das mulheres e crianças atingidas por zika

8 de maio, 2020

Por Morgani Guzzo

Publicado originalmente no site do Portal Catarinas

 

No Brasil, a discussão entre pessoas favoráveis e contrárias à ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas com útero sempre gera muita polêmica. Porém, muitas vezes, essa polêmica é criada pela ação de robôs, perfis falsos nas redes sociais, para engajar seus simpatizantes. Foi o que ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal (STF) pautou a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 5581, ajuizada pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), que pede que o STF proteja as necessidades de saúde e direitos de mulheres e crianças afetadas ou em risco de serem afetadas pelo vírus zika. 

Na quinta-feira (23), uma tag contrária ao aborto chegou aos trending topics da rede social Twitter, disseminando informações equivocadas sobre a ADI 5581 que impossibilitaram o entendimento do que realmente estava em discussão na corte brasileira. Embora a ação, protocolada em 2016, tenha como enfoque cinco pedidos que se relacionam às necessidades de saúde e condições básicas de subsistência para as famílias afetadas por zika, a hashtag tornou visível somente o pedido de proteção da saúde mental de mulheres grávidas infectadas por zika que desejam interromper a gestação.

O vírus zika é responsável por inúmeros casos de malformações e de complicações neurológicas, as quais se encontram associadas à infecção de mulheres grávidas pelo vírus, levando essa situação a ser declarada como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em fevereiro de 2016. Além da microcefalia congênita, uma série de manifestações foram verificadas nas crianças que nasceram com a síndrome congênita do zika, incluindo desproporção craniofacial, convulsões, irritabilidade, disfunção do tronco encefálico, como problemas de deglutição, contraturas de membros, anormalidades auditivas e oculares, e anomalias cerebrais.

Rochelle Alves é uma das mulheres que foi infectada pelo vírus zika em 2016, quando estava grávida. Moradora de Goiás e casada há 12 anos, Rochelle trabalhava e tinha o sonho de terminar a faculdade de publicidade e propaganda, porém, após o nascimento de Hickelly Mariáh, diagnosticada com microcefalia no sétimo mês de gestação, Rochelle precisou deixar o emprego para se dedicar exclusivamente aos cuidados da filha.

Com muita luta e persistência, ela terminou a faculdade mas, mesmo com Hickelly com 3 anos e 7 meses, Rochelle ainda não teve condições de voltar a trabalhar. “Os cuidados com ela são constantes, dia e noite e fica cada vez mais claro que as crianças precisam muito de atenção, que não é uma microcefalia simples. A gente tem visto que as crianças têm tido comprometimentos que vão se alastrando e aumentando com o passar dos anos. Os anticonvulsivos já são administrados com as dosagens máximas, e as crianças continuam tendo crises. A Hickelly faz tratamento com cannabis medicinal há um ano e isso tem ajudado a controlar as crises dela, mas ela ainda usa outros três remédios. Essa é a nossa vida, hoje”.

A realidade de Rochelle e Hickelly é apenas um exemplo das mais de três mil famílias que tiveram crianças que nasceram com a síndrome congênita do zika de 2015 a 2018.

Além das dificuldades no cuidado das crianças que demandam atenção exclusiva, as famílias enfrentam graves dificuldades financeiras devido ao preço dos medicamentos e dos tratamentos de saúde.

Por isso, por meio da ADI 5581, entidades buscaram via STF a garantia dos direitos das mulheres e das crianças de viverem com dignidade após terem sido contaminadas pelo vírus zika. Além do pedido protocolado pela Anadep, foram apresentadas, ao todo, cerca de trinta pedidos favoráveis como amicus curiae (ou amigos da corte, entidades que se dispõem a respaldar a matéria em exame) por instituições como a Anis – Instituto de Bioética, Grupo Curumim – Gestação e Parto, Instituto Patrícia Galvão, Católicas pelo Direito de Decidir; Cepia Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, entre outros. Pedidos contrários apresentados como amicus curiae foram sete, por entidades como a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), entre outras.

A ação tem como enfoque demandas amplas, como a universalização do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que desde 2016 é restrito somente à famílias com renda de um quarto de salário mínimo. De acordo com Rochelle, esse recorte de renda deixa inúmeras famílias que precisam de fora do benefício. “Uma família que ganha um pouco mais que isso, um salário mínimo por exemplo, ou que recebe algum outro tipo de auxílio, como no meu caso que recebi o seguro maternidade, já não pode receber o BPC. E mesmo para quem recebe um pouco mais de um salário, com todos os gastos com medicamento, transporte e atendimento de saúde, acaba sendo muito pouco”.

Mesmo com a aprovação, neste ano, da Lei 13.98, que garante pensão vitalícia para crianças afetadas pelo zika, essa lei ainda restringe o acesso ao direito somente às crianças nascidas entre 2015 e 2019, deixando de fora aquelas que nasceram após essa data, e mantém o mesmo recorte de renda de miserabilidade que já impedia às famílias o acesso ao BPC, pois somente quem já recebe o BPC é que pode migrar para a pensão, não sendo possível, ainda, acumular mais de um benefício.

Outro ponto da ADI 5581 é o pedido de serviços de atenção especializada em saúde para crianças com a síndrome em um raio de até 50 km da residência, ou garantia de transporte gratuito aos serviços quando a distância for maior do que 50 km. De acordo com Rochelle, essa dificuldade é, principalmente, das famílias que vivem no nordeste, mas ela mesma, para levar Hickelly ao atendimento de saúde, precisa pegar ônibus e o tempo de deslocamento é de duas horas para ir e duas horas pra voltar. “Isso se os ônibus adaptados para cadeirantes pararem no ponto, se estiverem no horário, se a esteira não estiver quebrada ou se o ônibus não estiver levando outro cadeirante, pois não é possível transportar mais de um cadeirante por vez”.

Segundo o presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), Pedro Paulo Coelho, desde que a contaminação pelo vírus se tornou epidêmica, em 2016, as famílias de mulheres e crianças que nasceram com síndrome congênita do zika estavam sem uma lei específica que as amparasse diante das dificuldades e das necessidades.

A ausência de políticas públicas, de informações e a dificuldade em controlar a proliferação do vírus, que é transmitido pelo mesmo mosquito que transmite a dengue (aedes aegypti), faz com que os casos de contaminação por zika vírus continuem aumentando, especialmente entre as populações mais empobrecidas e vulnerabilizadas.

De acordo com a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que deu suporte à ação da Anadep, mais de quatro anos depois do início do surto, o zika continua sendo uma questão de saúde pública. “Considerando quais foram exatamente as famílias afetadas e que tiveram o desenvolvimento da síndrome congênita na gestação e nos seus filhos, a gente sabe que as mais vulneráveis são aquelas vivem em áreas urbanas precárias, ou em áreas rurais onde não há saneamento básico adequado, onde há vastas áreas com água parada onde o mosquito se prolifera. Então, o fato de a gente ter saído de uma situação de epidemia de zika não foi por um sucesso de enfrentamento ao mosquito, o mosquito ainda circula entre nós, é menos uma questão de ação eficiente do Estado do que uma questão da própria dinâmica da transmissão da doença mesmo”, explica Gabriela Rondon, pesquisadora e consultora jurídica da Anis.

Segundo a organização, em 2019, 1.138 novos casos de crianças com suspeita de síndrome congênita pelo vírus foram notificados. Em 2020, apenas nos primeiros meses, já são 227 casos com suspeita, o que equivale a mais de dois novos casos por dia. Devido à dificuldade em acabar com a transmissão e ao surgimento de novos casos, outras demandas da ADI 5581 envolvem a disponibilização de informações atualizadas e de qualidade sobre zika, riscos e estratégias de prevenção, o acesso à políticas de planejamento familiar e saúde reprodutiva, incluindo métodos contraceptivos mais eficazes e de longa duração à disposição no sistema público de saúde, e a proteção à saúde mental de mulheres grávidas infectadas por zika, garantindo-lhes o direito de escolha pela interrupção da gestação, caso essa seja sua vontade.

“Essas são demandas bem importantes. Eu mesma já conversei com meu marido e disse que não tenho condições de ter outro filho agora, mas ainda não tive acesso ao DIU, tenho tentado pelo SUS, mas ainda não consegui. E sobre o aborto, eu acho que isso é o que mais pesou, porque muitas pessoas são contra, não querem nem discutir, por causa da religião, enfim. E aí eu fiquei muito triste, me abalou muito, porque mesmo que a gente explicasse que não se tratava só disso, que tinham muitas demandas, a ação foi rejeitada, principalmente por conta dessa questão, como se não existissem as outras demandas. E aí a gente fica sem saber como vai ser”, analisa Rochelle, que também é presidente da Associação de Microcefalia e outras Malformações por Zika Vírus em Goiás, criada há cerca de um ano.

As demandas apresentadas na ação tornam-se ainda mais urgentes no contexto da pandemia da Covid-19: as crianças com a síndrome congênita do zika enfrentam maiores riscos de saúde, pois, com frequência, sofrem de graves problemas respiratórios. Mulheres grávidas também são consideradas grupo de risco. A garantia de renda para os núcleos familiares impactados pelo zika, conforme pleiteado pela ação, auxilia na promoção das necessárias políticas de isolamento social, além de que os serviços de saúde se encontram sobrecarregados com pacientes contaminados com o novo coronavírus, dificultando ou impossibilitando o atendimento e o tratamento das crianças com zika.

Em sessão virtual concluída nesta quinta-feira, 30, a relatora, ministra Cármen Lúcia, considerou a ação prejudicada pois, para ela, a Anadep não tem legitimidade para propor a ADI. A ministra ressaltou que não constatou interesse jurídico da associação de procuradores nas normas e políticas públicas questionadas. Todos os ministros seguiram a decisão da relatora, mas, em seu voto, Luís Barroso, fez ressalvas: “Mulheres devem ter o poder de fazer suas escolhas existenciais e não são úteros a serviço da sociedade”.

Além de garantir o direito à interrupção da gestação por mulheres infectadas por zika, a aprovação da ADI 5581 pelo STF, segundo a Anis, poderia assegurar que as crianças com a síndrome congênita não tenham seus quadros de saúde agravados durante a pandemia e que as famílias possam cumprir as recomendações de isolamento social. “As necessidades sobrepostas de duas epidemias não podem ser negligenciadas, pelo contrário: a atenção às necessidades especiais de populações vulneráveis será condição de sucesso das medidas de saúde no país”, divulgou o Instituto, em nota.

Ao rejeitar a ação, perde-se uma batalha pela garantia dos direitos das mulheres, crianças e famílias já injustamente afetadas pela epidemia de zika e, como argumenta a Anis, para impedir que essa mesma população venha a sofrer piores consequências com a Covid-19.

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