Antes mesmo de sair do papel, o manual “anti-aborto” que o governo de Jair Bolsonaro (PL) colocou em pauta de audiência pública é alvo de críticas por entidades pró saúde de mulheres e meninas no Brasil. Organizações como o Instituto de Bioética (Anis), a Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UnB (Cravinas) e a Rede Médica pelo Direito de Decidir desaprovam elementos citados no manual e acreditam que as propostas podem acarretar sérios desafios para a prática do aborto legal no país.
Intitulado Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento, a prévia do manual do Ministério da Saúde afirma que todo aborto é crime. Tal afirmação é a mais contestada, já que o aborto legal é previsto em Lei. Outros temas, como o abortamento por telemedicina e o uso do medicamento misoprostol são dados de forma errada ou incompleta
A audiência acontece em meio ao caso ocorrido em Santa Catarina, onde uma criança de 11 anos teve o aborto legal negado pela juíza Joana Zimmer, mesmo que a interrupção de gravidez em caso de aborto seja permitido no Brasil. A menina havia procurado o hospital quando estava com 22 semanas de gestação, mas a unidade de saúde se recusou a realizar o aborto sem uma autorização judicial
Um documento produzido pelo Instituto de Bioética (Anis) e pela Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UnB (Cravinas) aponta que informações falsas e imprecisas foram compiladas na prévia do manual. Um dos itens mais criticados diz respeito ao conceito de aborto legal no Brasil.
Na página 14 do manual, por exemplo, a pasta afirma que “não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”.
Segundo as entidades, a afirmação é falsa. Não há qualquer equívoco no termo “aborto legal”. Aborto legal nada mais é que aborto autorizado por lei e, portanto, possível de ser realizado dentro da legalidade, sem que haja punição. O próprio documento do Ministério da Saúde admite, na página 23, que “a punibilidade integra o conceito de crime e, nessa perspectiva, o crime seria, de plano, afastado”.
Conforme previsto no Código Penal (Artigos 124 a 128), a norma regulamenta a prática quando a gravidez é fruto de estupro, quando representa risco à vida da gestante ou quando há anencefalia do feto. A Lei não exige qualquer documento para interromper uma gravidez decorrente de estupro – basta o consentimento da mulher ou de seu responsável legal.
[…] A expressão “aborto legal”, portanto, é amplamente utilizada em documentos técnicos de saúde e em doutrinas jurídicas que abordam a questão, exatamente porque se refere às possibilidades previstas em lei de realização do aborto”, completa.
Outro ponto criticado é referente a notificação sobre o aborto legal para autoridades policiais. Conforme o manual, profissionais de saúde teriam “segurança jurídica para, atuando em conformidade com as diretrizes e princípios de seu código de ética, promoverem a notificação de quaisquer crimes às autoridades competentes”.
“As diretrizes e princípios éticos não permitem que casos individualizados sejam notificados à autoridade policial, exceto a partir de expressa requisição e consentimento da mulher vítima (vide art. 3º da Lei nº 10.778/03. O compartilhamento de dados capazes de identificar as mulheres sem seu consentimento configura violação do sigilo profissional sem qualquer justa causa, hipótese em que os profissionais incorrem em crime previsto no art 154 do Código Penal”, explica a o documento de esclarecimento da Anis/Cravinas.
O ginecologista obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, Dr. Cristião Rosas, alerta que a afirmação do manual do MS é falsa, e que prejudica o direito ao procedimento do aborto legal. Um do casos recentes no Brasil aconteceu em Santa Catarina, onde uma criança de 11 anos – que sofreu passou por diversos impedimentos para poder abortar.
“Alegar que a polícia vai investigar a mulher ou a menina vítima do estupro, ou a gestante com grave comorbidade materna em risco de morte, ou ainda, a gestante impactada emocionalmente e em sofrimento psíquico por um diagnóstico tão ominoso como de gestar um feto anencéfalo, é tortura psíquica do Estado brasileiro”, atesta o documento da Rede.
Na página 28, o manual do MS afirma que “o médico tem o total direito de objeção de consciência para realizar um aborto. Isso não pode ocorrer se houver iminente risco de morte”. Rosas alerta que a objeção de consciência em saúde não pode ser uma barreira para que mulheres e meninas possa abortar
“[a prática] é direito dos profissionais de saúde, mas é secundário quando se fala em direito a saude e ao acolhimento. O profissional deve garantir que o aborto legal seja feito e não pode criar barreira ao acesso a esse direito. O hospital deve garantir que outro médico realize o procedimento ou encaminhe a mulher para um outro hospital onde se realize, sem prejuízo de tempo”, esclarece o ginecologista.
Popularmente conhecido como Cytotec, o misoprostol é um medicamento seguro e utilizado para o procedimento de aborto. Outra informação do manual contestada pelas organizações pró saúde é a respeito do uso da medicação. “A droga mais comumente utilizada é o misoprostol; o seu uso a cada seis horas mostra elevada taxa de sucesso”.
O tratamento medicamentoso de escolha é a combinação da mifepristona e do misoprostol, já que apresenta maior taxa de sucesso (aproximadamente 98%) quando comparada ao regime com misoprostol isolado (taxa de sucesso de aproximadamente 85%).
O documento do Ministério da Saúde omite a informação sobre a mifepristona, que não é disponível no Brasil, apesar de constar na Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial de Saúde desde 2005. Além disso, informa dados errados sobre o tempo de uso da medicação: O intervalo adequado entre as doses de misoprostol é de 3 horas.
O cytotec (nome da marca), droga à base de misoprostol, não tem registro na Anvisa e não pode ser comercializado no Brasil.
Não há limitação legal ao uso da telemedicina para o aborto previsto em lei no Brasil. As maiores autoridades em saúde, como a OMS e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) endossam a segurança e recomendam o uso da telemedicina para garantir o acesso ao aborto nas primeiras semanas de gestação. Interpretação contrária, sem base científica ou normativa, constitui discriminação de gênero e obstáculo indevido no acesso à saúde.
Ao contrário das recomendações médicas, “o Ministério da Saúde compreende ser ilegal, e, portanto, não recomendável, o abortamento via telessaúde”, conforme endossado na página 30 do manual.
A Audiência Pública para debater o manual acontece nesta terça, no Auditório Emílio Ribas, edifício sede do Ministério da Saúde – Brasília/DF, a partir das 8h. A transmissão será feita pelo Canal do Ministério da Saúde no YouTube.