Por Ana Bardella
Publicado originalmente no site Universa do UOL
A série Segunda Chamada, da Globo, retrata de forma intensa a realidade de muitas escolas públicas brasileiras. No episódio de ontem (5), também falou sobre um problema de saúde pública que ainda é pouco retratado na televisão: o aborto clandestino. O enfoque foi a personagem Rita (Nanda Costa). Mãe de três filhos, ela luta para realizar uma laqueadura pelo SUS. Depois de um ano de tentativas, finalmente consegue o agendamento. No entanto, ao chegar ao hospital para realizar a cirurgia, recebe a notícia de que está grávida pela quarta vez e que, por isso, não poderá se submeter à operação. A descoberta deixa a estudante desesperada, uma vez que ela não possui condições financeiras de cuidar de mais uma criança.
Pouco tempo depois, Rita passa mal na escola. Quando questionada pelos professores, explica que “é coisa de mulher”: tomou um medicamento abortivo e por isso está sentindo dores. Depois, diz que foi orientada pelo dono do “camelô” onde conseguiu a substância a ingerir dois comprimidos, uma vez que o primeiro não havia funcionado. Pálida e desmaiando, ela é levada ao hospital por dois funcionários da escola. Um deles informa à médica plantonista sobre o uso do remédio, que é ilegal no Brasil. Apesar de prestar o devido atendimento, a profissional da saúde faz uma denúncia à polícia, que vai até o local. Enquanto Rita é socorrida, seus acompanhantes são informados de que ela deverá prestar esclarecimentos na delegacia assim que tiver alta. A punição, no entanto, não acontece: a hemorragia da personagem piora. Como consequência da interrupção da gravidez feita de forma clandestina e sem as devidas orientações, a personagem falece.
“A questão não é ser a favor ou ser contra. O aborto existe. Só que é gente como Rita quem morre por falta de assistência médica”: a fala da professora Sônia (Hermila Guedes), de Segunda Chamada, faz sentido. Mesmo sendo considerado crime, brasileiras abortam. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto, meio milhão de mulheres interrompem a gravidez de forma clandestina todos os anos no país. A segurança com a qual realizam o procedimento, no entanto, varia de acordo com o seu poder aquisitivo.
Como não se trata de uma técnica legal, nenhuma mulher está cem por cento segura ao se submeter a ele. “Mas aquelas com recursos suficientes para pagar uma clínica médica recebem mais orientações e contam com respaldo dos profissionais da saúde. É impossível precisar a média de custo do procedimento nestes locais, uma vez que eles são clandestinos, mas o número oscila na casa dos milhares”, aponta Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Quem não pode pagar, recorre a outros métodos, mais baratos e arriscados.
De acordo com o Ministério da Saúde, a cada dois dias uma mulher morre em consequência de abortos inseguros.
Em casa ou na clínica
A ginecologista Mariana Rosário concorda que os abortos em feitos em clínicas clandestinas com respaldo médico são mais seguros do que os outros. “Quando uma intercorrência acontece, os profissionais, mesmo que de maneira ilegal, estão presentes para contornar a situação”, diz a médica (que não realiza este tipo de procedimento). “Já quando a mulher está em casa, existem mais riscos. Se ela compra remédios no mercado paralelo, não pode garantir que a procedência da substância é segura”, exemplifica. Outro problema é o uso incorreto do medicamento. “Sem as orientações de um profissional da saúde, a mulher pode ingerir ou aplicar a dose errada, o que traz complicações para o organismo”, completa.
Ainda que os remédios ajam de acordo com o esperado, é possível que um procedimento complementar seja necessário para finalizar o processo. “Só o comprimido e o sangramento podem não ser suficientes para eliminação do feto. Nestes casos, a indicação é realizar uma curetagem”, explica. Ela ainda relembra que algumas mulheres optam por outros métodos, como a ingestão de ervas ou a introdução de objetos no corpo para provocar o aborto. “Nos casos em que agulhas ou cabides são usados, existe o risco de perfuração do útero ou do intestino. O risco é altíssimo”, diz.
Na prática, quem arca com os custos das consequências dos abortos provocados clandestinamente é o próprio governo. De acordo com informações divulgadas pelo Ministério da Saúde, o SUS gastou cerca de R$ 500 milhões em tratamento de complicações causadas por abortos entre 2008 e 2017, sendo que 75% deles foram provocados. “A Organização Mundial da Saúde aponta que seria menos custoso bancar os procedimentos de forma legal desde o início do que somente prestar amparo depois que as interferências ocorrem. Além disso, salvaria a vida de muitas mulheres”, relembra Gabriela.
Médicos não podem denunciar
Na série, a médica que atende Rita denuncia a personagem para a polícia. A advogada explica que a conduta dos profissionais da saúde que denunciam mulheres por praticarem abortos é ilegal. “Eles são proibidos de revelar esta informação, pois a denúncia configura uma quebra de sigilo na relação médico-paciente”, aponta.
Apesar da ilegalidade, muitas denúncias acontecem. “O fato de o aborto ser criminalizado leva as pessoas a assumirem erroneamente que denúncia é uma regra”, argumenta. Mas isso não isenta o profissional que quebra o sigilo do seu paciente de responder pelos atos. “Se a mulher ou alguém que acompanhou o caso decidir denunciar a conduta inadequada, pode procurar o Conselho Regional de Medicina ou de Enfermagem, dependendo de quem falou com as autoridades”, detalha.
O problema, segundo a especialista, é que na maioria das vezes não é possível comprovar quem da equipe entrou em contato com a polícia. “Então o caso é arquivado”, completa. Por isso, na visão de Gabriela, muitas mulheres preferem omitir a informação de que ingeriram medicamentos, mesmo quando precisam procurar o hospital por complicações.