Por Gabriele Rondon
Publicado originalmente no portal JOTA
No fim de setembro, uma resolução do Conselho Federal de Medicina ganhou o debate público e gerou intensa controvérsia. Trata-se da resolução nº 2.232 de 2019, que anuncia estabelecer “normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente”.
O principal ponto de embate deu-se em torno do artigo 5º, § 2º, que cria uma situação específica para mulheres grávidas no acesso à saúde: prevê que “a recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.
Nessa situação, o caput do artigo indica, “a recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico”.
É verdade que há um problema grave com esse artigo. Recusa terapêutica pode ser entendida como o direito que todas as pessoas têm de negar submeter-se a algum procedimento ou tratamento de saúde, ainda que seja recomendado por um profissional.
As razões para a recusa podem ser várias ou nenhuma: a pessoa pode ter medo do procedimento, não estar segura de que ele seja necessário, preferir buscar opinião de outro profissional, não desejar submeter-se aos riscos associados, ou negá-lo por uma questão de fé. Não há definição legal do que possa ser “abuso de direito” para a experiência da gravidez: o dispositivo permitiria uma avaliação a ser feita exclusivamente pelo médico em contraposição às convicções, angústias e decisões da mulher grávida, para impor-lhe um procedimento forçado.
Mas sequer seria necessário chegar até o artigo 5º para concluir pela inconstitucionalidade da resolução.
O direito à recusa terapêutica poderia ser traduzido simplesmente pelo direito de não ser submetido a tratamento forçado – em termos constitucionais, não ser submetido a uma espécie de tortura, tratamento desumano ou degradante, vedado já nos primeiros incisos do artigo 5º.
A capacidade de tomar decisões autônomas e eticamente relevantes sobre a própria vida, saúde e integridade é uma decorrência clara da proteção à dignidade da pessoa humana, nada menos que um dos fundamentos da República. Entre os princípios que organizam o Sistema Único de Saúde (Lei nº 8080/90), está “a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral”.
O Código Civil, no seu artigo 15, determina que ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Tão grave é a intervenção médica realizada sem consentimento que pode ser tipificada sob o crime de constrangimento ilegal, como disposto no artigo 146 do Código Penal, o qual apenas exime de pena “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”. Qualquer outra intervenção não autorizada pode, então, provocar a persecução criminal do profissional de saúde que não respeita a vontade do indivíduo.
Infelizmente, a resolução nº 2.232 não se restringe a organizar os parâmetros de ética médica que ajudariam os profissionais de saúde a respeitar tais direitos. No artigo 2º, estabelece uma restrição indevida do direito de recusa apenas a tratamentos eletivos, nos artigos 3º e 4º, afasta a possibilidade de crianças, adolescentes e pessoas em sofrimento mental ou com deficiência intelectual recusarem tratamento “em caso de risco relevante à saúde”, ainda que estejam assistidos por representantes legais. Para todas essas situações, prevê a quebra de sigilo médico para informar autoridades sobre a recusa e, conforme indica o artigo 6º, “assegurar o tratamento proposto”.
O artigo 5º, além de permitir a violação de direitos de mulheres grávidas, ainda submete pessoas com doenças transmissíveis a tratamento compulsório, o que contraria ainda a lei nº 6.259 de 1975, que dispõe sobre as ações de vigilância epidemiológica, o Programa Nacional de Imunizações e a notificação compulsória de doenças, que segue o Regulamento Sanitário Internacional, e estabelece o isolamento e a quarentena como medidas de saúde pública para evitar ou controlar infecção transmissível, não o tratamento forçado. Do início ao fim, a resolução está marcada por inovações não autorizadas pelo marco constitucional e legal vigente.
O Conselho Federal de Medicina, assim como os Conselhos Regionais a ele vinculados, são órgãos disciplinadores da classe médica, mas sua competência regulamentadora da profissão, por óbvio, é restrita ao que os marcos constitucionais e legais autorizam. Não está incluída entre as atribuições do CFM a possibilidade de normatizar sobre direitos de pacientes – em outras palavras, os direitos de todos nós em nossos processos mais privados de saúde e adoecimento.
Não é concebível que uma entidade corporativa restrinja o que a Constituição e as leis aplicáveis preveem e protegem – o vício de origem da resolução fere o princípio da legalidade e torna todo o texto da normativa inconstitucional.
Assim, a revogação da resolução nº 2.232/19 é urgente, como muito se recomendou, para a proteção dos direitos das mulheres, mas não só. É urgente para a segurança jurídica de todas as pessoas no acesso à saúde.