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25 de junho, 2019

O aborto ainda é visto como uma questão moral e sua criminalização impõe medo e solidão para as brasileiras que decidem interromper a gravidez

Gabriella Soares e Maria Clara Novais

Publicado originalmente no Subverso

De tempos em tempos, o aborto volta a ser centro do debate público no Brasil. A questão de descriminalização da prática levantada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em uma audiência pública se tornou um assunto de interesse do governo federal, sob a liderança de Jair Bolsonaro. A atual ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves chegou a declarar que é contra o aborto em qualquer circunstância – o que difere da atual legislação, que permite a interrupção em casos específicos.

Antes mesmo de assumir o ministério, Damares afirmou que quer um Brasil sem aborto e que isso é possível com política públicas de planejamento familiar. Em entrevista no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), ainda na época de transição governamental, a ministra afirmou que o aborto devia acontecer nos casos previstos em lei, mas que “mesmo aqueles, eu tenho certeza que se oferecido para a mulher uma outra opção, a mulher pensa duas vezes”.

A fala da advogada, educadora e pastora causou revolta em alguns setores da sociedade, principalmente nos grupos que lutam pelos direitos das mulheres. O estopim veio com o apoio de Damares ao Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que daria direitos ao feto e que poderia restringir o aborto legal com a criação de uma “bolsa-estupro” paga pelo próprio estuprador para que as mulheres continuassem com a gravidez decorrente da violação. “Essa pasta não vai lidar com o tema aborto. Essa pasta vai cuidar de proteção de vida e não com morte”, disse ela na coletiva de imprensa.

No Brasil, o aborto é permitido em casos de: estupro, gravidez que oferece risco para a mãe e quando o feto é anencéfalo. Entretanto, as mulheres encontram muitas barreiras para interromper a gestação. Uma financiada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres revelou que, entre 2013 e 2015, mais da metade das brasileiras que procuraram o aborto legal não foram atendidas. Em dois anos, das 5.075 mulheres que foram à rede pública para realizar o procedimento, 2.442 (ou 48%) conseguiram fazer valer o direito. Além disso, o estudo aponta que 94% que buscaram pelo aborto legal sofreram estupro.

No Brasil, há 67 centros que realizam interrupções, mas em 2015, quando a pesquisa foi realizada, apenas 37 estavam funcionando. Em 15 desses centros foram realizados menos de 10 procedimentos nos últimos 10 anos. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2017, foram realizados 1.636 abortos legais. Nos seis anos anteriores, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos mantiveram a gravidez em decorrência de estupros, pois não foram atendidas pelo sistema de saúde. Dessa quantia, 1.875 tinham entre 10 e 14 anos de idade. Em 68,5% dos casos o estuprador era um familiar.

No caso de fetos anencéfalos foi constatado que as mulheres também não têm acesso a interrupção da gravidez com facilidade. Ainda de acordo com a pasta, de 2006 a 2016, mais de 400 mulheres acabaram tendo bebês anencéfalos por ano. A garantia de aborto nesses casos existe desde 2012.

Além das poucas instituições que fazem o procedimento de maneira recomendada, também há resistência por parte da equipe médica. Apesar de existir a garantia de sigilo, se um médico não acreditar nas alegações da solicitante pode denunciá-la. A pena para a mulher que for considerada culpada por abortar é de um a três anos de detenção.

Além disso, muitos profissionais alegam que não podem realizar o aborto por questões morais ou religiosas, esse comportamento é conhecido como “objeção de consciência”. Entretanto, segundo diretrizes do Ministério da Saúde, os médicos só podem recusar atendimento em casos em que haja outro profissional para atender a paciente, em que não exista risco de morte e naqueles em que a omissão não cause danos.

Em entrevista ao Subverso, o Instituto de Bioética Anis, que realiza a Pesquisa Nacional do Aborto, afirma que essas situações refletem uma exigência moral sobre o comportamento sexual e reprodutivo que seria adequado às mulheres. As dificuldades de fazer valer seus direitos e de poder decidir se querem ou não ser mães e viver uma maternidade idealizada socialmente podem impor a clandestinidade do aborto a elas.

Mariza Theme Filha é uma médica especializada em saúde pública e coletiva da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e estuda a saúde mental de mulheres passando por uma gravidez indesejada. Para ela, o processo abortivo já é uma decisão muito difícil, que pode ser agravado pela ameaça de penalização. “Nós falhamos no uso dos métodos contraceptivos, os métodos falham, então é inimaginável como isso pode ser criminalizado. Só poderia em uma situação em que não houvesse nenhuma falha, mas existem falhas e criminalizar esse aspecto da vida da mulher é de uma crueldade enorme”.

Além disso, muitas vezes o uso de preservativos é decidido pelo homem, que, em geral, não se responsabiliza pela gestação e pela criação dos filhos. “Hoje não temos uma estratégia eficaz de planejamento familiar, acesso à saúde, educação sexual, tudo isso faz parte de uma estratégia ampla, em que aborto precisa ser incluído para se pensar a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres”, afirma a Anis.

Nesse contexto, as taxas de gravidez indesejada são altas entre as mulheres que mantém a gestação. Segundo a pesquisa da doutora Theme, 50% das brasileiras não desejavam a gravidez naquele momento de suas vidas e 30% em momento algum. Entre as que assumiram não desejarem ter filhos, 10% afirmaram que utilizaram métodos abortivos.

Três em cada dez mulheres grávidas abortam no Brasil de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). O Ministério da Saúde estima que ocorram cerca de 1,4 milhão de abortamentos por ano, a taxa é de 3,7 interrupções para cada 100 mulheres de 15 a 49 anos. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, de autoria de Débora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, aos 40 anos, quase uma em cada cinco mulheres brasileiras já fez um aborto. Em 2015, foram cerca de meio milhão de abortos no país.

Para a Anis, a maioria dessas mulheres passam pela experiência de forma solitária por causa do medo de julgamento dos familiares e da denúncia. “Elas estão sozinhas quando decidem abortar, sozinhas quando realizam o procedimento, sozinhas depois de abortarem. O silêncio, a solidão e o abandono, são sem dúvida sentimentos que acompanham a maioria dessas mulheres que passa pela experiência da clandestinidade”.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) se posiciona a favor da descriminalização e legalização do aborto no Brasil. Para o CFP, esse é um elemento sociocultural que demonstra os aspectos violentos e de sofrimento da mulher. Assim, o Conselho entende que a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres faz parte da defesa dos seus direitos humanos e que isso significa o direito ao aborto seguro e legal.

“Nós temos que avançar no sentido que se a mulher não deseje manter a gravidez, ela possa ser orientada e fazer essa interrupção segura e gratuitamente no serviço público. Descriminalizar é proteger a saúde, a mulher não morrer, não ficar infértil, não ser presa”, defende a doutora Theme.

A Anis afirma que a proibição é ineficaz porque não evita o aborto ou a gestação indesejada, mas submete as mulheres a ameaças à saúde e ao medo de consequências legais e morais. “Um debate amplo inclui a sensibilização da complexidade de fatores que envolvem a decisão reprodutiva de uma mulher, e assim entender também que só ela pode ter condições de dizer se pode ou não prosseguir com uma gravidez”.

Nem as bonecas eram minhas filhas

Mais da metade das mulheres jovens adultas (20 a 29 anos) que moram nas regiões sul e sudeste do Brasil e que abortam declaram uso de métodos contraceptivos, em particular a pílula anticoncepcional, segundo uma pesquisa divulgada em 2009 pelo Ministério da Saúde. De 2000 a 2017, 269 milhões de contraceptivos foram entregues à população brasileira.

“Desde pequena eu nunca tive aquele sonho de ser mãe. Minhas bonecas eram minhas irmãs e não filhas. E sempre tive muito claro de que não arcaria com uma gravidez indesejada”, afirma Alice, uma universitária que mora no Rio de Janeiro. Entretanto, em 2015, ela engravidou. A jovem fazia uso de anticoncepcionais, mas decidiu parar por questões de saúde e qualidade de vida.

Na época com 20 anos, Alice estava em um relacionamento sério há quatro anos com Eduardo, que disse que assumiria um filho. Como tinham uma situação financeira confortável poderiam manter a gravidez. Porém ela estava decidida. Mesmo a família sendo católica, resolveu contar para a mãe e para o pai que pretendia realizar um aborto. Lúcia e Alberto apoiaram a decisão da filha. Eduardo, então, decidiu respeitar a escolha da namorada.

Alice tentou a interrupção com medicamentos, mas não funcionou. “Após o comprimido não ter dado certo, me desesperei por conta do tempo. Já tinha em torno de oito semanas”, lembra ela. O período em que teve que manter a gravidez fez com que ela se sentisse desconfortável e com vergonha do próprio corpo; sua autoestima estava abalada.

Nesse momento, a jovem recorreu a sua mãe. Lúcia contou para uma de suas irmãs e ela conseguiu o contato de uma mulher que poderia realizar o aborto. Após algumas trocas de mensagem, Alice marcou a data e combinaram o pagamento de mil e duzentos reais pelo procedimento. O aborto foi realizado em uma casa simples situada em um bairro na periferia. Lucia e Alberto acompanharam a filha, que apesar de decidida também estava apreensiva.

“Primeiro conversamos, ela me deu até um ‘esporro’ por estar passando por ali. Depois me levou até o quarto, me pediu pra deitar, colocou aquele abridor tipo bico de pato e injetou o líquido. Era tudo descartável e ela foi muito cuidadosa. Eu estava com medo na hora. De doer, de morrer mesmo. Passados uns 30 minutos, comecei a sentir cólicas fortes e logo depois veio um sangramento muito intenso. Fui correndo pra casa, sangrou, sangrou, sangrou…”.

Depois de uma hora, o sangramento diminuiu. Alice sangrou por três dias. “Aliviada… De ter finalmente terminado” era o sentimento que predominava. A experiência afetou a consciência da jovem em relação a contracepção e ao próprio corpo. Além disso, sua família se aproximou de doutrinas como budismo e hinduísmo, acreditando que o mais importante é a espiritualidade, fator que ajudou Alice a lidar com seu aborto.

Eduardo e Alice continuam juntos e sem planos de ter filhos. Ela voltou a tomar anticoncepcionais mesmo se preocupando com os efeitos dos hormônios em seu corpo. Mas o medo de outra gravidez indesejada e, consequentemente, outro aborto, é maior. “Entendo como uma medida desesperada e, em parte, irresponsável. Mas aceitável. Sabemos que nenhum métodos é 100% eficaz”, diz.

Alice acredita que o aborto deveria ser legalizado e, após o procedimento, as mulheres deveriam receber apoio psicológico para lidar com essa escolha. “Além dos casos de estupros, para qualquer mulher que desejasse fazer [o aborto] até a formação neural do feto. Porém, acho que deveria haver algum tipo de fiscalização para que seja um método de emergência e não um método contraceptivo”.

Alice se enquadra em algumas características do perfil da mulher que aborta no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, a maioria das mulheres tem entre 20 e 29 anos, está em uma união estável, são católicas e utilizam métodos contraceptivos. Além disso, costumam utilizar medicamentos como método abortivo e quanto maior a renda e a escolaridade, maiores as chances de a primeira gravidez ser interrompida.

Os dados do Ministério também indicam que 73% das jovens entre 18 e 24 anos consideram interromper a gestação. Ainda assim, os homens na mesma faixa etária têm mais experiência com o aborto que as mulheres: a primeira gravidez não é interrompida por 72,2% das mulheres, já com os homens o índice é de 34,5%. Os homens abortam duas vezes mais que as mulheres em sua vida reprodutiva.

Entre a cruz e a espada

Era uma pressão do tipo ou o emprego ou o filho”. Laura tinha 33 anos quando se sentiu coagida a realizar um aborto. Ela trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família paulista e quando descobriu que estava grávida procurou os patrões para contar a notícia. Cecília, a dona da casa, respondeu que ou ela interrompia a gravidez, ou seria demitida.

Laura já tinha um filho de 18 anos do primeiro casamento, realizado quando ela tinha 13 anos. Ela se separou do marido aos 23 anos e assumiu toda a responsabilidade pela criança. A mulher foi contratada pela família do coronel do exército logo depois. Com o tempo, Laura conheceu um rapaz com o qual começou a namorar e acabou engravidando. Ela não contou para ele.

A escolha de expor a situação para Cecília foi para buscar apoio em uma pessoa que também era mãe e tinha uma família. “O apoio que eles me deram foi pagar a clínica para eu fazer o aborto. Eu precisava do emprego, estava na necessidade, não era fácil. Ela me levou em uma clínica, fez todos os arranjos com o médico e pagou”, conta Laura.

Ela já estava grávida de três meses quando passou pelo procedimento cirúrgico em uma clínica particular. Cecília a acompanhou durante o aborto. “Entrei lá, eles me deram uma injeção e dormi; quando acordei já tava na sala. Você tem contrações, quando ela me deu a injeção começou a me dar cólicas, cólicas demais, aquela dor. Eu tremia, ela [Cecília] tremia… porque você não sabe se você vai sair viva ou morta, então é arriscado, muito arriscado. Eu não faria nunca hoje, jamais”.

Depois do aborto, Laura sentia um vazio e arrependimento. O namorado dela só ficou sabendo quando ela já estava no hospital. Furioso e inconformado, ele terminou o relacionamento. A família dela também não a perdoa por não ter mantido a gravidez. Para eles, “aonde come um, come dez, come quinze”, conta. Dez anos depois, a mãe dela ainda condena e critica sua atitude. Na época, foi a mãe que contou sobre o aborto para toda a família, que é religiosa e só aceita a interrupção em casos de estupro. “Sempre que tem um comentário assim, você chora, você se pergunta o porquê com você…”, ela relata.

A reação de sua família junta-se ao arrependimento próprio; Laura precisou de ajuda psicológica para lidar com a experiência. “A minha patroa mesmo procurou um psicólogo para mim. Porque eu só chorava, chorava, chorava; onde eu estava, eu estava desesperada. Eu tinha que desabafar com alguém porque até aquele momento só eu e ela sabíamos”, lembra. Laura trabalhou 15 anos na casa do coronel e de Cecília, que sempre a alertava para não engravidar novamente. Essa é uma das razões para que ela não tenha tido nenhuma outra gestação.

Hoje, Laura é casada com outro homem e o sonho do casal é ter um filho. Ele sabe sobre o aborto que ela fez e, embora não julgue, sempre fala que queria uma criança fruto do relacionamento. Laura está na menopausa e não pode mais engravidar. Assim, sua maior alegria são as seis netas. Ela ainda mantém uma amizade com o ex-namorado que sempre relembra: ‘hoje nosso filho era pra ter 10 anos e você fez uma coisa dessa’.

Pela sua experiência e por ser religiosa como sua família, Laura é contra o aborto que aconteça fora do contexto de violência. Ela tem amigas que já fizeram essa escolha e as aconselha contra. “Porque a gravidez e o bebê é uma responsabilidade, mas o aborto também, é muito perigoso e você sofre as consequências depois. Você sempre está com a consciência culpada, sempre. Mas cada um tem uma maneira de pensar nisso”.

Laura também se encaixa no perfil da mulher que aborta, apontado pela Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 e pelo Ministério da Saúde. Em média, essas mulheres já tem um filho, 13% delas estão com mais de 25 anos de idade e estão inseridas no mercado de trabalho. Além disso, o aborto também é comum entre aquelas que tem até oito anos de escolaridade, como Laura.

Não consegui suportar, me senti invadida

“Além de motivos sociais, como a minha idade na época, eu morava de favor na casa de outras pessoas, não tinha estabilidade para mim ou para uma criança tampouco maturidade emocional ou psicológica para criar uma criança”. Sofia era uma adolescente de apenas 15 anos vivendo em Maceió quando decidiu que não iria levar adiante sua gravidez. Na época, ela estava namorando Otávio, um homem de 20 anos, e tinha sido abandonada pelos pais.

A mãe de Sofia sofria de depressão e tinha surtos psicóticos, a primeira vez que expulsou a menina de casa, ela tinha apenas 10 anos. Aos 11, enquanto estava na casa de amigos da família, sofreu o primeiro abuso sexual. Até os 13 anos, Sofia passou por muitos lares até ir morar com o pai, envolvido com agiotagem. Na época, ele era casado com uma adolescente de 16 anos. Sofia ficou oito meses naquela casa, até ser expulsa novamente.

A menina viveu de favor em diferentes casas e aos 15 anos conheceu Otávio, com quem começou um relacionamento e que a ajudava a sobreviver, comprando comida e ajudando financeiramente. Ele também comprava o anticoncepcional que Sofia usava, mas como ambos não tinham muito dinheiro, o uso do remédio era inadequado e esporádico. “Quando descobri a gravidez nessa situação, fiquei desesperada, ele deixou tudo a minha escolha, na realidade, mas mesmo assim, a gente ficou bem desesperado. No mesmo dia eu já tava certa de que queria abortar”, afirma ela.

Apesar de Otávio dizer que assumiria a gravidez, não era o que Sofia queria, então começou a pesquisar por métodos abortivos na internet. Após descobrir o valor do remédio, o casal começou a juntar dinheiro e vender pertences para conseguir a quantia. Durante o processo, um casal de amigos mais velhos, Rodrigo e Pedro, pediram para que ela mantivesse a gravidez, pois eles tinham interesse em adotar o bebê.

No entanto, Sofia não se sentia bem com a gestação. “Eu não consegui suportar a ideia de uma barriga crescendo em mim, de ter algo dentro de mim, eu me sentia invadida”. Otávio a ajudou a comprar o medicamento abortivo e ficou com ela até que ela tomasse o remédio.

O misoprostol, medicamento utilizado por Sofia, chegou ao Brasil em 1986 e é o principal composto utilizado para fazer abortos no mundo. O remédio tinha como objetivo o tratamento de úlceras gástricas, mas logo foi descoberto como um método eficaz e barato para interromper a gravidez. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, nove em cada dez mulheres que usam a dose correta de misoprostol conseguem abortar. Em 1991, o fármaco foi proibido no Brasil.

Entretanto, a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 demonstrou que 48% das mulheres utilizaram medicamentos para abortar. Em 1980, além das clínicas, os principais métodos abortivos eram chás, ervas, sondas, objetos perfurantes e líquidos cáusticos, procedimentos considerados perigosos para a saúde da mulher. Mesmo o consumo do medicamento ter triplicado durante os anos, o número de atendimentos pós-aborto não aumentou, porém, segundo o Ministério da Saúde, houve uma queda na mortalidade de mulheres que escolheram interromper a gravidez.

Durante uma semana, Sofia ficou internada após sangramentos intensos. Rodrigo e Pedro a levaram para um hospital particular e os médicos realizaram a curetagem, um procedimento médico que raspa a cavidade uterina. A menina falou para a família com quem morava que não sabia que estava grávida e que o aborto foi espontâneo. Otávio não foi até a clínica.

A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 indica 48% das mulheres que usam medicamentos para interromper uma gravidez precisam ser internadas para finalizar o aborto. Segundo dados de 2017 do Ministério da Saúde, a curetagem representou 3,9% de mais de 4,5 milhões de cirurgias realizadas naquele ano. Além de retirar restos de um aborto incompleto, o procedimento, que serve para retirar a placenta após o parto normal e como meio de diagnóstico ginecológico, custou R$ 37,97 milhões ao SUS. Ainda de acordo com os dados, mais de 250 mil mulheres são atendidas pelo sistema público de saúde após procedimentos abortivos inseguros por ano. Há cerca de 5 mil internações de mulheres em estado grave.

“Depois do aborto, eu senti como se tivesse realizado com sucesso uma tarefa bem difícil. Eu senti que nunca mais queria passar por aquilo, a gravidez, mesmo sendo fruto de sexo consensual, foi um estupro ao meu emocional”, lembra Sofia. mesmo sendo fruto de sexo consensual, foi um estupro ao meu emocional.

O relacionamento da jovem com Otávio durou mais quatro meses. Com 17 anos, ela tentou se reaproximar da mãe, mas não deu certo. Aos 18, ela recebeu uma herança após a morte do pai e decidiu mudar para outro país. Sofia escolheu a Dinamarca pela qualidade de vida e pela oportunidade de estudar.

Atualmente com 21 anos, ela afirma que, se engravidasse, faria um aborto novamente, mesmo agora tendo mais informações sobre os riscos dos medicamentos e procedimentos. Sua certeza de que não quer ser mãe é tão grande que escolheu o DIU de cobre como método contraceptivo porque pesquisas mostram que o cobre aumenta a chances de aborto espontâneo.

Ela também acredita que a ideia de que formas de prevenir uma gestação está disponível para todas as mulheres é irreal, já que ignora que não são todas as pessoas que conseguem arcar com qualquer método contraceptivo. Além disso, durante parte da adolescência, ela encontrou outra barreira para ter acesso a preservativos: “Eu não lembro de um posto de saúde perto de casa que tinha e eu não podia ser atendida, porque não tinha “pais” como responsável. Eu não podia pegar camisinhas ou nenhum outro [método contraceptivo]. Foi o que me disseram.”

Sofia acredita que a decisão de abortar não é uma decisão egoísta nem fácil. “Eu tive pais ruins e eu definitivamente não quero por uma criança no mundo irresponsavelmente e proporcionar as coisas que eu vivi por descaso parental. A maternidade é algo socialmente empurrado nas costas como se fosse a única obrigação tua a partir do momento que a gravidez surge”, explica ela.

A história de Sofia é similar a de muitas adolescentes brasileiras. A Pesquisa Nacional do Aborto apontou que 29% dos abortos realizado em 2016 foram de mulheres com idade de 12 a 19 anos. Segundo o Ministério da Saúde, essas meninas geralmente estão em um relacionamento estabelecido, são dependentes economicamente da família ou do companheiro, não planejam a gravidez e utilizam remédio.

Além disso, a pesquisa demonstrou que uma em cada quatro jovens voltam a engravidar em até um ano após o aborto. Entre as meninas que prosseguem com a gravidez, 70% abandonam a escola e a chance de tentar abortar entre os 20 e os 34 anos aumenta em 2,5.

 

Morte como consequência da criminalização

Segundo o estudo 20 anos de Pesquisa Sobre Aborto no Brasil, do Ministério da Saúde, o aborto é a quinta causa mais comum de morte materna no Brasil. Números de 2016 mostram que 7,56 % das mortes são consequência da interrupção da gestação. Mas o número de mortes por aborto podem ser ainda maiores, já que o próprio Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) alerta que há inconsistência dos dados devido ao preenchimento das causas da morte (se na gravidez, parto, puerpério ou aborto) na declaração de óbito. Segundo a pesquisa, o total de mortes maternas demonstra ainda a desigualdade racial no país: o número de mulheres negras mortas é quase 50% maior.

O uso do misoprostol como medicamento abortivo no Brasil fez com que o número de mortes maternas causadas pelo aborto induzido diminuísse significativamente. Estudos dos anos 1990 e 2000 indicam que 88% das mortes eram causadas por métodos abortivos mais perigosos, como os perfurantes.

O medicamento é mais seguro porque diminui os riscos de hemorragias e infecções, principalmente se aliado ao atendimento médico posterior para a realização da curetagem. Mas ainda assim os riscos existem. Como este medicamento é proibido no Brasil, houve um crescimento de um mercado ilegal de medicamentos abortivos e, muitas vezes, eles são adulterados e podem prejudicar gravemente a saúde, além de não funcionarem.

Outro dado divulgado pelo Ministério revelou que 40% das mulheres em situação de mortalidade near miss (quase-óbito), isto é, de complicações potencialmente fatais, tentou abortar. Os motivos para escolher a interrupção podem ser diversos e um deles é ter assistência médica negada em circunstâncias previstas em lei. Estima-se que 94% dos pedidos de aborto legal foram de gestação decorrente de estupro.

A pesquisa Aborto no Mundo 2017: Progresso e Acesso Desigual mostra que em países em que o aborto foi legalizado a mortalidade materna caiu drasticamente e o número de abortos também. Em Estados em que a interrupção não é permitida em qualquer hipótese ou apenas no caso de risco de vida da mãe, são 37 abortos a cada mil mulheres. Já nos países em que o aborto é legalizado, a proporção é de 34 para mil mulheres.

A Romênia registrava 148 mortes a cada 100 mil nascimentos em 1989 e após a legalização passou para 9 a cada 100 mil em 2002. África do Sul foi de 425 mortes maternas em 1994 para 40 nos anos de 1991 a 2001, uma queda de 91%. Já no Brasil, segundo o DataSUS, entre 1993 e 2013, 1.572 mulheres morreram por causa do aborto inseguro.

*Os nomes das mulheres que relataram suas experiências com aborto foram trocados para garantir segurança e anonimato.

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