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Quando se criminaliza o direito à saúde: o erro do Brasil com o misoprostol

5 de abril, 2019

Solução para diminuir a indecente taxa de mortalidade materna que ainda perpetuamos passa por uma pílula

Gabriela Rondon

Publicado originalmente no JOTA

Reduzir a mortalidade materna é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, ao qual o Brasil se comprometeu. Já era um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, metas adotadas entre 2000 e 2015, que o país, infelizmente, não cumpriu. Apesar de ter havido avanços, a taxa brasileira de mortalidade materna segue alta, por volta de 64 por 100 mil nascidos vivos. Entre as principais causas de morte durante a gravidez ou parto estão hipertensão, hemorragias e complicações pós-aborto. As razões para a dificuldade de reduzir a taxa são muitas e é possível que uma delas seja banal: obstáculos ao acesso a um medicamento simples e barato, à base de um princípio ativo chamado misoprostol.

O misoprostol é conhecido há décadas no país, produzido por indústria nacional e tem funções tão diversas quanto induzir o parto vaginal – evitando, portanto, intervenções mais invasivas e cesáreas -, tratar complicações pós-parto como hemorragias, finalizar aborto incompleto e induzir parto de feto morto retido. Pode também ser utilizado para o aborto legal nas primeiras semanas de gestação, em geral sem necessidade de intervenção cirúrgica posterior.

Sendo um medicamento tão versátil, de baixo custo e capaz de salvar vidas de mulheres, parece contra-intuitivo que não esteja disponível aos montes nas unidades obstétricas do país, ou mesmo em farmácias para os casos permitidos em lei. O problema, infelizmente, é normativo.

Um medicamento à base de misoprostol, conhecido pelo nome comercial Cytotec, era vendido nas farmácias da América Latina desde meados da década de 1980 para o tratamento da úlcera gástrica. Na bula, havia contraindicação do uso durante a gravidez, pela possibilidade de provocar aborto. Foram as mulheres brasileiras quem, como cientistas da vida comum, passaram a testar doses do medicamento para realizarem sozinhas abortos seguros. Descobriram o que hoje a Organização Mundial da Saúde recomenda: o misoprostol é eficaz para realização de aborto seguro nas primeiras semanas de gestação e, com adequado acesso à informação, as mulheres podem realizá-lo até as 9 semanas sem necessidade de apoio médico, inclusive em suas próprias casas.

A descoberta desse uso levou o Ministério da Saúde a alterar a regra da venda em farmácias em 1991, passando a exigir retenção da receita. Em 1998, no mesmo ano em que o Ministério pela primeira vez regulamentou como deveria ser oferecido o serviço de aborto legal, também editou a Portaria nº 344, que proibiu a venda do misoprostol em farmácias e tornou seu uso restrito a hospitais previamente credenciados, submetidos a uma outra série de requisitos. O princípio ativo passava a fazer parte de uma lista chamada C1, que estabelece substâncias sujeitas a controle especial, como antipsicóticos ou anestésicos com possibilidade de gerar dependência.

Por estar nessa lista, a importação, venda, distribuição ou entrega do misoprostol pode ser enquadrado no crime de infração sanitária do artigo 273 do Código Penal, submetido a penas de 10 a 15 anos de reclusão e multa. Ao mesmo tempo, seu nome consta desde 2010 da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), publicada pelo Ministério da Saúde. A contradição é exatamente esta. Acessar um medicamento essencial à saúde, ainda que seja para uso pessoal, pode ser considerado crime hediondo no Brasil. Mas as restrições não param no obstáculo ao acesso. Resoluções da Anvisa desde pelo menos 2006 “determinam a suspensão” da divulgação de informações sobre o uso do misoprostol. Além de criminalizar o acesso a um medicamento essencial, as normativas brasileiras pretendem impedir o acesso ao conhecimento científico sobre o funcionamento da substância. Não há notícia de outro medicamento que seja tão intensamente proibido como o misoprostol. Tampouco há registro de que outros países restrinjam tanto a sua disponibilidade como o Brasil.

Reportagem da Folha de S. Paulo em 31 de março revelou que o Ministério da Saúde ainda não fez a compra do fármaco para o ano de 2019. Na última compra divulgada, em 2016, menos de 25% dos serviços de saúde com leitos obstétricos do SUS receberam o medicamento, segundo a matéria. Especialistas entrevistados apontam que a regulamentação restritiva e a burocracia por ela gerada são fatores que têm correlação com a escassez do misoprostol mesmo nos serviços que deveriam ter acesso regular a ele. O estigma do aborto é o plano de fundo que não se pode ignorar.

O obstáculo deliberado tem efeitos não só nas complicações obstétricas e mortes de mulheres que acessam os serviços de saúde, como impede a redução de danos do aborto realizado fora desses serviços. A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 mostrou que aproximadamente 500 mil mulheres realizam aborto a cada ano no país; metade delas com uso de medicamentos. O Ministério da Saúde computa uma morte por aborto clandestino a cada dois dias. Considerando que em 7 estados brasileiros não há nenhum serviço de aborto legal, e os obstáculos a que os serviços existentes ainda submetem aquelas que tentam acessá-los, é possível supor que ao menos parte delas sejam mulheres a quem o Estado já deveria acolher e oferecer o serviço pela legislação atual. Se não são amparadas pela política pública, ao menos o acesso adequado à informação e ao medicamento poderia salvar suas vidas.

A solução para diminuir a indecente taxa de mortalidade materna que ainda perpetuamos passa por uma pílula, e ela não é mágica. Está disponível no mundo concreto que leva a saúde das mulheres a sério.

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