por Ingred Suhet
Publicado originalmente no Metrópoles
Ao menos três candidatos a presidente da República nas eleições de outubro sugeriram a realização de plebiscito para os brasileiros discutirem e decidirem se o aborto pode ser legalizado no Brasil. Em entrevistas recentes, ao serem questionados se concordavam com o método de interrupção da gravidez, Marina Silva (Rede), Alvaro Dias (Podemos) e Ciro Gomes (PDT) declararam-se favoráveis à consulta popular e dispostos a realizá-la caso vençam a corrida ao Palácio do Planalto.
No entanto, especialistas alertam que o plebiscito não é a maneira adequada de se decidir sobre um direito individual garantido na Constituição Federal. Segundo Lívia Gil Guimarães, doutoranda em direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), se levada a cabo, uma consulta sobre aborto feriria o inciso IV do artigo 60 da Carta Magna, que trata justamente sobre os direitos individuais dos cidadãos brasileiros.
“No geral, [o aborto] é sim um direito individual, social e uma questão de saúde pública”, portanto, assegurado e cláusula pétrea da Constituição Federal, na avaliação da especialista. Ela participou, no último dia 6, de audiência pública relativa à descriminalização do aborto (na foto em destaque, protesto antes do evento), realizada no Supremo Tribunal Federal (STF).
“O plebiscito não é ferramenta adequada para discutir direitos de grupos vulneráveis, como é o caso das mulheres. Questões sobre direitos minoritários podem e devem ser mais bem tratadas em espaços onde há troca de razões públicas, como o STF”, afirma Lívia. “O Supremo é um espaço onde há oportunidade contra [a posição] majoritária. Isso significa estar entre os seus deveres proteger o direito das minorias e de grupos vulneráveis. A discussão também poderia ocorrer no Congresso, mas há bancadas religiosas. É difícil haver avanços lá”, completou a doutoranda da USP.
Em relação ao posicionamento dos candidatos favoráveis ao meio de intervenção para a sociedade debater e eventualmente decidir sobre a legalização do aborto, Lívia Gil Guimarães ressalta que “quem propõe o plebiscito já prevê o resultado”. De acordo com a especialista, a maioria não deve decidir sobre o direito de minorias.
Outra especialista a favor da tese é a professora de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli. A docente reforçou que “direitos fundamentais não podem ser decididos de forma plebiscitária”, ao mencionar “o caso do direito ao aborto, que envolve diretamente a garantia de integridade física e psíquica às mulheres e o princípio constitucional de igualdade”.
Para Flávia, a decisão “é dever constitucional do Estado”. Na avaliação dela, a ação é garantia de que a “dignidade e a integridade física e psíquica das mulheres serão respeitadas na prática e pelo ordenamento jurídico nacional”.
Em relação à descriminalização do método de interrupção da gravidez, a especialista alertou: “vale observar que, como demonstra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF] 442, as garantias contidas na Constituição brasileira são feridas pela aplicação do Código Penal de 1940 à decisão da mulher sobre abortar”.
A opinião dos candidatos
O Metrópoles entrou em contato com as coordenações de cinco campanhas ao Palácio do Planalto para saber posicionamentos em relação à legalização do aborto e possível realização de plebiscito sobre o tema. No caso do PT, foi solicitada manifestação tanto do atual candidato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quanto de seu vice, Fernando Haddad, que pode assumir a cabeça de chapa caso a Justiça Eleitoral confirme a impossibilidade de o titular concorrer devido à sua condenação em segunda instância (conforme critérios da Lei da Ficha Limpa).
Confira, a seguir, a resposta de cada presidenciável:
Marina Silva (Rede)
“Sou contra o aborto por uma convicção filosófica e de fé. Não é algo que devemos desejar para ninguém, mas, infelizmente, o que temos é uma prática feita com prejuízos para a vida da mulher. Desde 2010, defendo que se faça um debate sobre essa questão seguido de um plebiscito”, informou a candidata, por meio de nota encaminhada à reportagem.Alvaro Dias (Podemos)
A reportagem solicitou posicionamento do candidato, por meio de sua assessoria de imprensa, mas não recebeu resposta até o fechamento desta matéria. No entanto, ao ser questionado sobre a legalização da maconha em entrevista recente à GloboNews, Ciro Gomes afirmou:
Em resposta ao Metrópoles, a assessoria do candidato Geraldo Alckmin (PSDB) informou: “ao governo federal cabe o estabelecimento de políticas públicas voltadas à prevenção da gravidez indesejada, com ações educativas voltadas não só às mulheres, mas também aos homens, que precisam ser chamados à responsabilidade. A legislação atual, que julgamos adequada, prevê o aborto em casos de estupro, risco de vida para a mãe ou quando o feto é anencéfalo. A discussão sobre o tema não diz respeito apenas ao Executivo: ela passa necessariamente pela sociedade, seus representantes no Congresso e pelo Judiciário.”
A reportagem solicitou posicionamento do candidato, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
PT
Em tese, conforme informou o professor à reportagem, há possibilidade de discussão sobre a temática por meio do instrumento de intervenção. A hipótese apenas seria proibida mediante cláusula pétrea se a questão fosse considerada direito fundamental, e isso só ocorreria caso o aborto fosse integralmente proibido ou liberado no país. No entanto, hoje ele é considerado legal e permitido às brasileiras em três situações específicas.
É possível para a mulher abortar: se estiver grávida após sofrer um estupro; quando a gestação representa risco de morte para a mãe; e se o feto for anencéfalo. Nessas situações, as brasileiras conseguem atendimento gratuito nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Por um lado, não há ‘direito fundamental’ que assegure/garanta o ‘direito ao aborto’. A discussão, nesse particular, coloca-se no plano do que seria um direito fundamental das mulheres à sua personalidade e à sua intimidade/privacidade”, observa o professor. Segundo ele, “dentro do contexto maior de uma ‘dignidade especificamente feminina da pessoa humana’, que se projetaria também para um direito fundamental sobre o uso do seu corpo, isso incluiria, pois, o direito a não usar o seu corpo para manter/sustentar uma gravidez indesejada”.
Mello conclui: “Isso, em princípio e salvo juízo diverso sobre essa premissa, já afastaria qualquer eventual conflito entre possível ‘emenda constitucional’, plebiscito e/ou referendo a ela relacionado e à referida cláusula pétrea do artigo 60, inciso IV, da Constituição Federal”.
Debates no STF
Especialistas, ativistas e representantes da sociedade civil deram início, no dia 3 de agosto, a discussões sobre a descriminalização do aborto no primeiro trimestre da gestação. A audiência pública ocorreu por dois dias, até o último dia 6, no Supremo Tribunal Federal.
Na ocasião, participantes favoráveis e contrários à decisão de descriminalizar o método de interrupção da gravidez apresentaram argumentos no âmbito da ADPF 442. A medida foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSol).
A sigla propõe tornar inconstitucionais os artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro – de data anterior à Constituição Federal –. Os trechos em questão estabelecem pena de até 3 anos para mulheres que abortam e de até 10 anos para autores do procedimento.
Uma das participantes da audiência no Supremo, Débora Diniz, antropóloga, professora da faculdade de Direito da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), disse ao Metrópoles que “nossa Constituição já ampara plenamente a possibilidade de mulheres não serem criminalizadas por aborto”.
“A Constituição já protege os direitos fundamentais relacionados ao tema: à dignidade, à cidadania, à saúde, à igualdade das mulheres”, ressaltou. “É por isso que o Supremo Tribunal Federal é também o local adequado para se debater o tema, e é isso que pede a ADPF 442”, completou.