Para antropóloga Debora Diniz, casos como o da criança estuprada impedida de abortar por juíza estão conectados à criminalização da prática, que gera fanatismo e confusão de papéis entre profissionais de saúde e Justiça.
Por Edison Veiga/DW Brasil
O caso da criança de 11 anos que, grávida após um estupro, foi pressionada por uma juíza de Santa Catarina a não interromper a gestação tem mobilizado diversos setores da sociedade. Do lado acadêmico, a antropóloga Debora Diniz, professora na Universidade de Brasília (UnB) e referência na luta pela descriminalização do aborto, não se furtou ao debate.
Ela foi às redes sociais para manifestar sua indignação pelo caso e cobrar uma mudança de comportamento das autoridades envolvidas. “Uma menina deve ser protegida, livre para brincar, aprender e sonhar. Jamais ser refém de seu próprio corpo, espoliado e despossuído por um brutal agressor. Jamais deve ser coagida por representantes do Estado a se manter grávida”, escreveu ela, em um dos posts publicados no Instagram sobre o assunto.
Em entrevista à DW Brasil, Diniz ressaltou que “cabe a uma juíza, a uma promotora, entender que sequer ela deve ser convocada” para interferir em um caso como esse, já que é uma das situações em que o aborto é previsto na legislação brasileira.
“Isso cria um clima de fanatismo e de confusão de papéis em profissionais de saúde que deveriam cuidar e passam a se comportar como polícia, como investigadores, e profissionais da Justiça que passam a operar como agentes da moral e evangelizadores”, ressalta a antropóloga. “E isso nós precisamos romper: esse ciclo de abuso de autoridade em torno do aborto.”
DW Brasil: De que maneira esse caso sintomático pode ser interpretado à luz dos valores da sociedade brasileira?
Debora Diniz: Esse caso está conectado à situação de criminalização do aborto no Brasil. Isso cria um clima de fanatismo e de confusão de papéis em profissionais de saúde que deveriam cuidar e passam a se comportar como polícia, como investigadores, e profissionais da Justiça que passam a operar como agentes da moral e evangelizadores. Foi esse o caso. A criminalização do aborto cria um contexto persistente de medo, de perseguição, inclusive intencional. […] É claro que esses valores são ambíguos, porque sabemos que muitas mulheres fazem aborto no Brasil, temos os números da Pesquisa Nacional de Aborto. Então, mais importante do que perguntar sobre os valores é perguntar como os Poderes operam em torno de extremismos que são colocados, e são parte inclusive do governo [do atual presidente Jair] Bolsonaro.
Independentemente do desfecho, a vida dessa menina já ficará marcada pelo trauma do estupro e, agora, pela exposição pública do caso. Como isso deve ser tratado no âmbito individual?
Uma situação brutal como essa tem de ser tratada no âmbito privado, com agilidade e todo o cuidado que o trauma pede. É uma situação dramática. Para a menina, pela violação dos direitos. E aqui não podemos confundir: o problema não está no vazamento da audiência, mas na própria cena da audiência, que é brutal na imposição de sequência de traumas a essa menina. Agora ela tem de ser o centro do nosso cuidado. E esse é o giro que a sociedade brasileira tem de fazer: o centro do cuidado é a menina, e não a discussão sobre o aborto, a moral do aborto e como isso vem sendo feito.
E no âmbito coletivo? Isso deve ser levado para uma discussão pensando em próximos casos?
Sim. Vivemos uma sequência de casos muito parecidos. Teve aquele caso do Espírito Santo [ocorrido em 2020], onde houve um fanatismo. Agora essa… Esses casos podem elevar a discussão para outro âmbito, um âmbito menos fanático, que é por onde vem sendo levado por setores muito conservadores e fanáticos da sociedade brasileira. […] No âmbito coletivo, isso tem um efeito importante. As mobilizações sociais são importantes para romper os marcos hegemônicos de estigma, de fanatismo, de segredo, de medo sobre o aborto. E este é um momento concreto em que houve o rompimento. Isso é lento, é penoso, é sofrido, porque é uma menina concreta à espera de ser cuidada.
De que maneira as instituições públicas podem agir para que no âmbito judicial não voltem a ocorrer casos como o dessa juíza?
As instituições públicas aqui são desde as escolas, os hospitais e o judiciário, que precisam compreender a lei. Não há a exigência de barreiras como as que estão sendo impostas a essas meninas. Não há necessidade de autorização judicial. Cabe a uma juíza, a uma promotora, entender que sequer ela deve ser convocada [para interferir em um caso como este]. Os hospitais devem atender sem impor barreiras. As escolas, cumprir seu papel de monitoramento e cuidado. Há uma camada de informação. Mas, [no restante] não é só desinformação, é má-fé. Porque o que vimos naquele diálogo [da juíza com a criança vítima de estupro] é um abuso de poder, um abuso de autoridade. E isso nós precisamos romper: esse ciclo de abuso de autoridade em torno do aborto. […] A repercussão pública e política desse caso nos ajuda a inclusive inibir, coibir excessos e abuso de poder, como foi nesse caso concreto. Além disso, o processo de investigação do judiciário já está em curso. Isso tem um efeito, por mais terrível que seja, pedagógico.
E os cidadãos? Como a sociedade civil pode se posicionar para que os direitos reprodutivos da mulher não diminuam ainda mais?
[Neste caso] a resposta veio da sociedade civil. A resposta de transformação do estado de coisas veio de um jornalismo sério, pelo [site The] Intercept [Brasil] com o Portal Catarinas [canais que investigaram e divulgaram o caso em primeira mão], e uma imensa mobilização social. Esse dado é muito importante, coloca a importância do jornalismo investigativo sério para uma agenda de direitos em um movimento tão sensível à sociedade brasileira.
Há retrocessos atualmente?
Não há nenhuma dúvida de que há retrocessos. Há uma tentativa permanente de maior restrição dos direitos reprodutivos, inclusive com pessoas fanáticas como essa [juíza]. A postura dela não está dissociada do estado de coisas políticas que vivemos atualmente no país.