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Por que é errado usar plebiscito para decidir sobre descriminalização do aborto

4 de setembro, 2018

por Debora Diniz

Publicado originalmente na Revista Marie Claire

É certo que a candidata Marina da Silva é evangélica. É transparente em suas crenças e exercita a laicidade em seu discurso político na campanha presidencial. Há um salto de cidadania nessas duas posturas – não esconder suas crenças religiosas e ser respeitosa da separação entre o Estado e as religiões. É também uma das principais defensoras do plebiscito para o aborto. Ela não está sozinha nesta defesa. Importante jornal do país assume em editoriais que a saída para a questão seria o plebiscito. Há, pelo menos, três erros neste argumento.

O primeiro é que questões de ética privada não se resolvem pela consulta à vontade da maioria. Ter ou não religião, casar-se ou manter-se solteiro, escolher ou não ter filhos são alguns exemplos de questões privadas que o Estado regula preferências e proteções, mas não faz uso do direito penal para reprimir comportamentos dissidentes. Hoje, uma mulher que aborte vai para a cadeia. Já houve países que proibiram os cidadãos de terem crenças de fé: foram histórias autoritárias e de grave violação da intimidade. Assim como não caberia um plebiscito sobre se os indivíduos devem ser livres para professar ou não uma religião, o mesmo soa incoerente quando defendido para aborto.

O segundo erro é que plebiscito se apresenta como um falso instrumento democrático para soluções de casos difíceis. O apelo ao “plebiscito” é como uma estratégia de encobrimento do que já está posto e será apenas atestado como vontade da maioria. Temas de forte apelo moral movem sentimentos antagônicos e intensos, o que vem sendo descrito nos estudos sobre tomadas de decisão, como provocações que movem nosso “sistema 1”, isto é, as emoções e as respostas irrefletidas. Uma mesma mulher que já tenha feito aborto poderá responder “contra” se consultada em um referendo popular. Na corrida por convencimento na fase preparatória a um plebiscito, ganharia quem mais recursos tiver para a provocação das emoções e do medo. Ou seja, os mesmos grupos que hoje perseguem as mulheres, as denunciam nos hospitais ou as acusam de pecado sairiam na frente para colonizar as urnas com “não ao aborto”.

O terceiro erro é metodológico. O debate sobre aborto é, falsamente, posto como entre aqueles a “favor” e “contra”. Não há isso de lados como em uma torcida de futebol. Se houvesse pergunta razoável para um plebiscito sobre aborto, ela não seria validada por nenhum instrumento de pré-teste científico. Sua complexidade não se adequa ao formato “sim” ou “não” de plebiscitos. Em respeito à transparência democrática, imagino uma pergunta neste formato: “O aborto é crime desde 1940. Isso significa que uma mulher irá para a prisão se fizer um aborto. Prisão significa cadeia de 1 a 3 anos. Essa mulher é alguém de sua rede familiar ou comunitária. Uma em cada cinco mulheres já fez um aborto no Brasil. Ela é jovem, negra, tem religião e, hoje, cuida de filhos. Não sabemos as razões pelas quais ela faz um aborto. Nossa consulta é se você acha que essa mulher deve ser presa e abandonar seus filhos?”.

Recorrer à tese do plebiscito é referendar o patriarcado cristão que já está posto e com um risco adicional de se alardear ser a criminalização “a vontade da maioria”. Não vale a resposta que os grupos políticos teriam tempo para “esclarecer” a população: a moral do aborto não será solucionada por semanas de campanha política preparatória a um plebiscito, ao contrário, há o risco de acirrar animosidades. Assim, parem de sustentar plebiscito como saída política ou moral. Vamos enfrentar a questão do aborto como deve ser: matéria de ética privada, em que as mulheres precisam ser protegidas para o exercício da maternidade digna.

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