por Juliana Domingos de Lima
Publicado originalmente no Nexo
A incidência do aborto induzido (provocado quando a mulher não deseja ou não pode arcar com a gravidez) no mundo diminuiu nos últimos 25 anos. Mas há grandes diferenças entre as regiões do globo.
O número tem sido puxado para baixo pelo dados dos países desenvolvidos: mulheres estão abortando menos na América do Norte e na Europa. No mesmo período, no entanto, países em desenvolvimento não tiveram alteração significativa em suas taxas de aborto.
América Latina e Caribe possuem os índices mais altos do mundo: são 44 abortos praticados por ano a cada mil mulheres em idade reprodutiva (entre 15 e 44 anos). A maioria dos países da região possui leis altamente restritivas com relação ao aborto.
As informações são do relatório “Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access” (Aborto no mundo 2017: progresso assimétrico e acesso desigual, em tradução livre), do Instituto Guttmacher.
Divulgado em março de 2018, o estudo reúne pesquisas recentes com dados do mundo inteiro e foi feito pelo instituto americano, que atua na área de saúde e direitos reprodutivos.
Segundo Susheela Singh, vice-presidente de pesquisas internacionais do Instituto Guttmacher, a redução das taxas de aborto nos países desenvolvidos se concentra no Leste Europeu e coincide com o aumento na disponibilização e uso de contracepção nos países que integraram a União Soviética.
“Isso mostra o potencial impacto de tornar a contracepção disponível para mulheres sem acesso a ela”, disse Singh em entrevista ao Nexo.
Nos países desenvolvidos, como um todo, a taxa de uso de contraceptivos é mais alta e é provável que a eficácia no uso dos métodos também seja maior. Portanto, o que explica o número menor de abortos são as taxas menores de gravidez indesejada.
Nos países que proíbem total ou parcialmente o aborto, o uso crescente na década de 2010 do misoprostol, medicamento que induz o aborto, tem tornado a interrupção voluntária de gravidez mais segura para as mulheres.
A ampliação no uso do medicamento significa que elas passaram a recorrer menos a métodos mais inseguros. Significa, também, consequências menos graves para a saúde das mulheres que abortam.
No Brasil, segundo Singh, o estudo destaca que o número de tratamentos para complicações decorrentes de abortos clandestinos diminuiu entre o início dos anos 1990 e 2012, ano mais recente para o qual havia dados disponíveis. Singh acredita que essa queda também esteja ligada à disseminação do uso de misoprostol para abortar.
O estudo traz estimativas novas e mais precisas sobre a segurança do aborto, classificado em seguro, menos seguro e nada seguro.
Calcula-se que entre 2010 e 2014, no mundo, 55% dos abortos realizados são seguros, 31% menos seguros e 14% nada seguros. A segurança do procedimento também melhorou, a nível global.
Na América Latina e Caribe, a situação do aborto com relação à segurança também varia:
24% dos abortos são seguros na região
59% são menos seguros
17% são nada seguros
De acordo com o relatório, as taxas estimadas de gravidez indesejada apresentaram queda significativa, tanto nos países desenvolvidos quanto em desenvolvimento, em relação à década de 1990.
Nos países desenvolvidos, são 45 a cada mil mulheres entre 15 e 44 anos, e nos países em desenvolvimento, 65 a cada mil. Desses últimos, as maiores taxas estão na América Latina e Caribe (96 a cada mil) e África (89 a cada mil).
Globalmente, 56% dessas gestações terminam na indução de um aborto.
Apesar da queda do número de gestações não planejadas também nos países em desenvolvimento, o estudo aponta para a necessidade de agir segundo a preferência crescente das mulheres e casais nesses países por famílias menores:
melhorando o acesso a métodos contraceptivos modernos
investindo em programas de planejamento familiar, ainda falhos nesses países, o que se converte em altas taxas de aborto
De acordo com o relatório, o grupo que apresenta a taxa mais alta de necessidade não atendida por contracepção são mulheres solteiras e sexualmente ativas – o que indica que o estigma continua a impedi-las, sobretudo as adolescentes, de ter acesso a serviços e aconselhamento apropriado para prevenir a gravidez.
Para compreender por que as taxas mais altas de aborto e gravidez indesejada se apresentam atualmente na América Latina e Caribe, o Nexo entrevistou a pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e professora da UnB Débora Diniz.
Segundo Diniz, a literatura acadêmica de saúde pública mostra, praticamente em consenso, haver um contexto e uma consequência comuns em países de leis punitivas ao aborto.
“O contexto dos países em que o aborto é criminalizado é de restrição ao acesso à informação [sobre o aborto], restrição à distribuição buy generic viagra de informação sobre os métodos contraceptivos, à variedade no acesso e à conversa sobre gravidez na adolescência. Particularmente na América Latina nesse momento, a gente tem um retrocesso de conversas sobre educação sexual e gênero nas escolas, com essa categoria ‘ideologia de gênero’”, disse.
“A criminalização do aborto não se dá isolada de um contexto mais amplo de restrição à proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas e das mulheres.”
A consequência, de acordo com a pesquisadora, é que a cada vez que uma mulher aborta, o sistema de saúde perde a oportunidade de cuidar da mulher e prevenir um novo aborto.
“Quando uma mulher faz um aborto, ela entra no que a OMS chama de rota crítica do aborto. É a entrada no serviço de saúde, para finalizar e ter assistência após um aborto [clandestino]. Como ela não fala a verdade para o profissional de saúde, porque tem risco de ser denunciada, como acontece no Brasil, perde-se a oportunidade de saber o que está acontecendo na decisão reprodutiva dela, no planejamento familiar, para que ela precise fazer um aborto. Se ela usa o método [contraceptivo] de maneira equivocada, se ela sofre violência, se não faz uso de método” Débora Diniz Pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética
Para Diniz, a alta taxa de abortos na América Latina é uma pista sobre o uso de contraceptivos no continente, e pode indicar que há mulheres em situação de constrangimento, vulnerabilidade ou violência que as impede de acessar esses métodos.
“Uma família, uma mulher, tem que ter ampla informação e condições de tomada de decisão sobre o melhor método [contraceptivo] a ser usado para sua vida. Mas a informação para uso de métodos está colada a uma série de discussões sobre o papel da mulher, sobre sua possibilidade de decisão autônoma, sobre gênero e direitos das mulheres. Não há como conversar sobre aborto sem conversar sobre contracepção. ” Débora Diniz Em entrevista ao Nexo
Diniz ainda defende que “não se resolve a questão do aborto ameaçando as mulheres de prisão. Aqui estão dados mostrando que a ameaça de cadeia não faz diminuir o número de abortos”, disse. “Estamos em uma das regiões mais restritivas [em termos de legislação]. Temos uma evidência concreta de que o uso do direito penal, o uso da punição para controlar a reprodução aumenta a taxa de abortos.”