por Luciana Boiteux
Publicado originalmente n‘O GLOBO
A criminalização do aborto se sustenta numa crença moral e religiosa da existência de “vida” antes do nascimento na forma de uma existência distinta e autônoma do embrião em relação à mulher. Reflete uma concepção tradicionalista e patriarcal, que ignora sua vontade e impõe o controle do Estado sobre o corpo feminino, ao considerar a interrupção voluntária da gravidez como crime contra a “vida”, independentemente do tempo de gestação.
Contudo, é a criminalização do aborto que atenta contra a vida de tantas brasileiras, negras e pobres, que morrem todos os dias em decorrência de procedimentos inseguros. Apesar das evidências que comprovam o risco devido à criminalização e a necessidade urgente de ser um tema de saúde pública, no Brasil esse crime existe no Código Penal desde 1830. Mesmo após a Constituição democrática de 1988, depois da revolução sexual e da pílula anticoncepcional e 30 anos após a Lei do Divórcio, ainda não conseguimos garantir às brasileiras todos seus direitos. Além de abortos inseguros serem a quinta causa de mortes maternas, as vítimas são as pobres e negras, a quem tem sido negado o acesso a serviços de saúde.
No Parlamento, acordos garantem a interdição do debate, bem como avançam posições conservadoras para tentar eliminar as poucas hipóteses de exclusão do crime previstas (risco da vida da mãe, estupro e anencefalia). A realidade hoje no Brasil, que queremos mudar, é especialmente cruel com as mulheres, pois nem mesmo o aborto legal é acessível. No Rio de Janeiro só há um local onde elas podem realizar esse procedimento, sendo que 86% das vítimas de estupro não conseguem. Tal situação levou a vereadora Marielle Franco a propor um programa de atenção humanizada ao aborto legal. Diante disso, em 08/03/2017 o PSOL e o Instituto Anis protocolaram no STF a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 442, que visa a descriminalizar mulheres que praticam aborto até 12 semanas de gestação, seguindo a posição de vários países, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade e da igualdade das mulheres. O STF dirá se é proporcional, justo ou constitucional criminalizar mulheres que praticam aborto e aplicará a Constituição.
A criminalização não impede que se pratiquem abortos nem a descriminalização irá obrigar qualquer mulher que não queira a abortar.
Nenhuma fica feliz com o procedimento, é um sofrimento para elas. O que defendemos é o direito de exercerem a maternidade se e quando quiserem, e para isso as queremos vivas. Respeitamos as posições que condenam a prática, mas não aceitaremos que prevaleçam dogmas morais e religiosos fundamentalistas para justificar a manutenção do crime de aborto num Estado que se pretenda laico, democrático e de direito. É pela vida das mulheres.