por Debora Diniz
Publicado originalmente na Marie Claire
PEC 181 é descrita como cavalo de Tróia. A alegoria é adequada à manobra legislativa em curso no Congresso Nacional – o texto legal em discussão não menciona aborto, mas o mistério do início da vida. Os deputados querem mudar a Constituição Federal de 1988: para eles, é preciso que todos concordem com um mesmo marco filosófico de início da vida.
A vida teria início na fecundação entre um óvulo e um espermatozoide, dizem os deputados, na sua grande maioria representantes de comunidades religiosas. O tema é filosoficamente intrigante, e a resposta não é autoevidente como se poderia arrancar dos livros de biologia escolar. Há vida em óvulo antes da fecundação, há vida em fios de cabelo, há vida em crianças abandonadas pela rua, há vida em um asilo de velhinhos. O que importa não é saber quando, mas quem e como deveremos proteger os direitos fundamentais das pessoas.
Por trás da obviedade das palavras é que se esconde o monstro: proibir o aborto em todas as situações no país. Antes uma mulher no cemitério que tendo feito um aborto, pensam os deputados. Para os defensores da sacralidade da vida imediatamente após a fecundação (quando não há sequer um feto ainda, mas células se multiplicando), as teses filosóficas são mais importantes que a vida das mulheres de carne e osso. É assim que a PEC 181 é um cavalo de Tróia para as mulheres, mas também para as próprias crenças de seus defensores.
Nos países em que o aborto foi descriminalizado ou legalizado, as taxas de aborto diminuíram. Sim, parece contra-intuitivo, mas é fácil entender o raciocínio. Quando uma mulher aborta, algo está confuso em sua vida reprodutiva: ou utiliza incorretamente os métodos contraceptivos, ou é vítima de violência ou é muito jovem. Como o aborto é criminalizado e estigmatizado, as mulheres não contam suas histórias de aborto aos profissionais de saúde – com isso, se perdem chances de prevenir futuros abortos. Sem podermos ajudá-las, o mais provável é que ela venha a fazer um novo aborto.
A PEC 181 esconde, assim, dois monstros. O primeiro atinge diretamente às mulheres – mesmo sendo vítimas de um estupro serão obrigadas a se manter grávidas ou se arriscarão na clandestinidade com risco de prisão. O segundo monstro é uma armadilha que acompanha os que defendem mais crime e cadeia para as mulheres que abortam: haverá mais abortos, mais células recém-fecundadas não serão gestadas, e mais segredo se fará em torno das formas de proteção às meninas para situação de abuso sexual. O monstro é grande e engolirá os próprios defensores da vida desde a fecundação.