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Pandemia e novas regras dificultam acesso ao aborto legal no Brasil

24 de novembro, 2020

Por Ana Ionova

Publicado originalmente no site da BBC News Brasil

Renata (nome fictício) tinha acabado de juntar dinheiro suficiente para realizar um aborto clandestino quando a pandemia de coronavírus impôs as medidas de isolamento em grande parte do Brasil.

A jovem de 27 anos foi estuprada no ano passado por um ex-namorado que continuava sendo próximo da família. Mãe de duas crianças, ela descobriu que estava grávida algumas semanas depois.

“Não sabia o que fazer”, lembra Renata.

“A única coisa de que eu tinha certeza era que não queria aquela criança.”

No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, quando a vida da mãe está em risco ou quando o feto apresenta anencefalia (condição rara que impede o desenvolvimento de parte do cérebro e do crânio).

Embora Renata tivesse direito ao aborto por lei, como muitas mulheres no Brasil, ela não conhecia totalmente seus direitos.

Ela receava ter que denunciar o estupro à polícia para ter acesso a um aborto legal — o que acaba afastando muitas mulheres do procedimento. E ela temia retaliações do estuprador.

“Eu estava realmente preocupada com a segurança dos meus filhos”, diz, ao explicar a decisão de economizar para fazer um aborto clandestino.

Abortos clandestinos são arriscados: quando realizados sem uma boa supervisão médica, podem levar a complicações e colocar em risco a vida das mulheres. Se descobertas, elas também podem pegar até quatro anos de prisão.

Mas Renata não sabia mais a quem recorrer e começou a economizar os R$ 3,7 mil que precisava para o procedimento clandestino.

Um médico pegaria um voo no Rio de Janeiro, a mais de 900 quilômetros da casa de Renata em Minas Gerais, para realizar o procedimento. Mas, em seguida, a pandemia de covid-19 paralisou o Brasil, fechando aeroportos, rodoviárias e centros de saúde.

No fim de abril, Renata estava grávida de 23 semanas.

“Quando tudo fechou, ficou muito difícil viajar, tudo se tornou muito complicado”, relembra.

Diante dos atrasos, Renata recorreu à internet mais uma vez em busca de opções. E encontrou a rede Milhas pela Vida das Mulheres, que ajuda no acesso a abortos seguros.

O grupo a ajudou a entender seus direitos e indicou uma das poucas clínicas de aborto legal ainda em funcionamento durante a pandemia. Para Renata, foi uma reviravolta.

“Eu ia arriscar minha vida e poderia não estar viva hoje”, diz ela sobre o aborto clandestino que planejava fazer.

Acesso dificultado

Muitas mulheres brasileiras não tiveram a mesma sorte durante a pandemia. No início, a crise restringiu drasticamente o acesso ao aborto legal, já que muitas clínicas de aborto fecharam.

Dados coletados por ativistas sugerem que, das 76 clínicas cadastradas que oferecem aborto legal em todo o Brasil, apenas 42 permaneceram abertas durante a pandemia.

Uma delas é a Nuavidas, em Uberlândia, que atende vítimas de violência sexual.

“A pandemia se tornou uma desculpa para retirar direitos das mulheres”, diz a obstetra Helena Paro, coordenadora da Nuavidas.

Sandra Leite é coordenadora do Centro de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência do Hospital da Mulher do Recife, que também permaneceu aberto durante a pandemia.

Segundo ela, a crise sanitária dificultou o acesso de mulheres vulneráveis ao atendimento médico.

Durante a quarentena, “as mulheres tiveram mais dificuldade de sair de casa” para procurar ajuda, acrescenta Leite.

“E, em alguns casos, os agressores estavam dentro de casa com elas, então elas não podiam buscar atendimento médico.”

Ela afirma que o centro onde trabalha observou uma diminuição no número de pacientes, embora tenha sido um dos poucos a permanecer abertos.

Mas, de acordo com ela, agora que as restrições devido ao coronavírus diminuíram, a demanda por abortos legais aumentou.

“Estamos vendo que as mulheres sofreram mais violência enquanto estavam isoladas em casa com seus agressores”, diz Leite.

‘Limite arbitrário’

Na clínica em que Paro trabalha, o número de mulheres que buscam o aborto legal dobrou recentemente. E muitas mulheres estão chegando com gestações mais avançadas, provavelmente porque não puderam buscar ou encontrar ajuda durante a pandemia.

“Às vezes, essas mulheres têm que viajar longas distâncias para ter acesso a esse direito”, explica Paro.

“E é por isso, normalmente, que elas estão chegando com gestações mais avançadas”.

Isso pode representar mais uma barreira para as mulheres. Abortos após 22 semanas de gestação são controversos, e o Ministério da Saúde desaconselha, citando riscos elevados para a saúde da mãe.

Paro diz que embora o limite de 22 semanas “não seja baseado na ciência”, tampouco consagrado na lei brasileira, a maioria das clínicas se recusa a realizar o procedimento a partir desse ponto.

A clínica em que Paro trabalha é uma das poucas em todo o Brasil que realiza abortos depois das 22 semanas de gestação.

Ela classifica as 22 semanas como um “limite arbitrário” e argumenta que muitos médicos usam como “desculpa para se recusar a fazer um aborto que eles já são contra”.

“Portanto, se uma mulher passar (das 22 semanas), ela terá grande dificuldade de encontrar uma clínica de aborto no Brasil hoje” para realizar a interrupção da gravidez, conclui Paro.

Dificuldade adicional

Mesmo antes de a pandemia de covid-19 atingir o Brasil, o direito ao aborto estava sob ataque.

Com poucas clínicas em um país tão grande, a maioria das mulheres já lutava para ter acesso ao aborto legal, diz Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada da Anis, organização que promove os direitos das mulheres.

No norte do país, com áreas mais pobres, há apenas duas clínicas para uma região de mais de 17 milhões de pessoas.

“Muitas mulheres não têm uma clínica perto delas, especialmente as mulheres nas áreas rurais”, diz Rondon.

“E também há falta de informação — muitas vezes, as mulheres não são informadas de que têm esse direito”.

Ela acrescenta que, na prática, muitas clínicas afirmam oferecer o serviço, mas “colocam uma série de barreiras, que atrasam ou impossibilitam o acesso ao aborto”.

Quando as mulheres chegam a uma clínica que oferece abortos legais, geralmente são tratadas com hostilidade ou questionadas de forma agressiva. Algumas são rejeitadas ​​por médicos que se recusam a fazer abortos por motivos de “consciência”.

Novas regras

As mulheres que procuram o aborto legal agora também enfrentam um novo obstáculo.

Em agosto, o governo lançou novas diretrizes instruindo clínicas a denunciar casos de estupro à polícia, mesmo quando as vítimas não querem registrar queixa ou identificar o agressor.

Sandra Leite acredita que a orientação vai desencorajar mulheres que foram estupradas de procurar abortos a que têm direito por lei.

“Todo esse trabalho que foi feito ao longo de anos, hoje estamos vendo desmoronar.”

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