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Pandemia aprofunda crise em serviços de aborto legal e profissionais buscam saídas

11 de março, 2021

Direito de interrupção da gravidez em casos previstos em lei é alvo de ataques do governo Bolsonaro

Por Angela Boldrini

Publicado originalmente no site da Folha de São Paulo

A pandemia de coronavírus agravou em 2020 a crise que os serviços de aborto legal vivem no Brasil em meio ao avanço de políticas conservadoras por parte do governo Jair Bolsonaro, dizem especialistas e profissionais de saúde.

“Eu não tenho dúvidas que este é o pior momento desde 1989, quando abrimos o primeiro serviço”, diz o médico Cristião Rosas, que atuou no Hospital do Jabaquara, em São Paulo, pioneiro na interrupção legal da gravidez, e hoje é coordenador do Doctors For Choice, organização que defende o direito ao aborto.

Segundo um levantamento realizado pela revista AzMina com a Gênero e Número e a ONG Artigo 19 em junho de 2020, apenas 55% dos 76 locais de atendimento continuavam funcionando durante a pandemia. E esses hospitais já representavam apenas 43% dos hospitais indicados pelo Ministério da Saúde (MS), já que em 2019 a Folha mostrou que, de 176 unidades, cem não faziam de fato o aborto legal ou não responderam sobre a realização ou não do procedimento.

O Pérola Byington, referência para a interrupção, chegou a paralisar os serviços por alguns dias em março. Após repercussão negativa, os procedimentos foram retomados.

A manutenção da saúde reprodutiva na pandemia é uma diretriz do Ministério da Saúde. Ou, melhor dizendo, chegou a ser.

Em 1º de junho, foi publicada nota técnica da pasta recomendando que fosse assegurada a saúde da mulher. O texto menciona lateralmente o aborto legal, dizendo ser um serviço essencial. Bolsonaro publicou em rede social que estava buscando os responsáveis “de portaria apócrifa sobre aborto”. Dois dias depois, a nota foi retirada do site do ministério e os servidores responsáveis por ela exonerados.

No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, risco para a mãe e anencefalia do feto. No entanto, o presidente e outros membros do governo, como a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, não escondem o objetivo de acabar com a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez.

Em discurso na ONU em fevereiro de 2021, a ministra afirmou que o país continuava firme na defesa “da família e da vida a partir da concepção”. No final de outubro, o governo Bolsonaro incluiu a previsão de “vida desde a concepção” em diretriz de desenvolvimento[ x ]

Antes da pandemia, os serviços sofriam com a omissão. Em 2019, o misoprostol, medicamento utilizado para a interrupção de gravidez em estágios iniciais, ficou em falta no país porque o MS atrasou em seis meses sua compra.

No entanto, diz Cristião Rosas, é a primeira vez que há um “ativismo estatal” pelo fim do direito ao aborto legal. “Nem na época que começamos nós tivemos tanta dificuldade e tanto ativismo contra direitos reprodutivos vindo de gestores”, afirma o médico.

Aparentemente na contramão, dados mostram que, nos hospitais onde o procedimento ainda é feito, os casos aumentaram. Na rede municipal de São Paulo, por exemplo, o número de interrupções subiu de 57 em 2019 para 85 em 2020, segundo a Secretaria Municipal de Saúde.

De acordo com a advogada Gabriela Rondon, do Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), porém, não é possível afirmar que o crescimento signifique maior acesso. “Com a pandemia, houve um aumento também da violência cometida dentro de casa, o que pode ser um dos fatores. Também é possível que, com o fechamento de serviços, o número de casos daqueles que permanecem abertos cresça”, diz.

Ela afirma que profissionais de hospitais acompanhados pelo instituto têm relatado também uma mudança no perfil das mulheres que chegam em busca do procedimento. “Elas são mais jovens e chegam com a gestações mais avançadas, o que denota uma dificuldade de acesso ao procedimento.”

Para mitigar os efeitos da crise, profissionais de ao menos 44 serviços têm se reunido de maneira virtual mensalmente.

Um dos caminhos apontados é o início do uso de telemedicina para o acompanhamento de parte dos procedimentos. Até as nove semanas de gravidez, há evidências científicas de que o aborto feito com medicamentos pode ser feito em casa com segurança, diz a obstetra Helena Paro.

A médica acompanha a primeira iniciativa do gênero no país, iniciada no meio da pandemia. “Com a crise sanitária, é uma opção interessante porque libera leitos que seriam ocupados sem necessidade e também diminui o risco de paciente e equipe serem infectados pelo vírus”, afirma.

Hoje, as mulheres ficam internadas. Na modalidade remota, as pacientes são recebidas para a avaliação presencial obrigatória e levam para casa o misoprostol, que também só pode ser obtido pessoalmente. A partir daí, são acompanhadas à distância e orientadas sobre sintomas esperados e quando buscar ajuda presencial, por exemplo.

De acordo com a médica, apenas um serviço de saúde já implementou a modalidade. Dos seis abortamentos legais feitos em 2021, cinco usaram a telemedicina. Já há conversas com outros quatro hospitais para ampliar a rede. A estimativa é que 80% dos casos sejam elegíveis, o que ajudaria a manter o atendimento mesmo com os hospitais sobrecarregados.

Especialistas ouvidos para esta reportagem demonstraram preocupação com a possibilidade de retaliação a profissionais e serviços de saúde que, por isso, não serão identificados.

No ano passado, o médico que realizou o aborto na menina capixaba de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio foi chamado de assassino e ouviu de manifestantes contrários ao aborto: “por que o senhor não mata seus filhos?”

O obstetra foi também alvo de sindicância por ter realizado o procedimento. A Folha revelou que Damares atuou para tentar impedir a realização do aborto. A ministra nega e diz ter ido prestar assistência à menina.

O caso do Espírito Santo motivou mais uma investida do governo Bolsonaro para restringi-lo. O MS editou portaria obrigando os médicos a comunicarem à polícia casos motivados por estupro e a oferecer à mulher a possibilidade de visualizar o feto em ultrassonografia. Isso, segundo especialistas ouvidos, configura tortura psicológica.

A norma foi contestada e, às vésperas do julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal), a pasta voltou atrás e editou nova portaria, mantendo a obrigatoriedade da comunicação do estupro.

A medida visa, dizem especialistas, desencorajar vítimas a buscarem o apoio. “A esfera criminal é importante para o combate à violência sexual, mas não pode ser obrigatória. Há casos em que a mulher não quer ou não pode denunciar”, afirma Rondon.

A advogada diz que a quebra de sigilo médico configura crime, já a normativa não seria passível de punição. “Temos orientado os médicos de que eles estão mais seguros não informando e não cometendo um crime do que o contrário”, diz. A norma continua sendo alvo de ação de inconstitucionalidade no STF.

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