- Aborto: Não é possível que um documento que tem caráter normativo inferior as leis crie obstáculos para proteção de direitos, diz pesquisadora;
- Manual antiaborto do Ministério da Saúde não possui força de Lei, mas pode influenciar o Congresso;
- Instituto listou recomendações para que profissionais continuem ofertando os serviços de aborto legal no Brasil.
Após a repercussão a respeito das iniciativas do Ministério da Saúde, consideradas ‘antiaborto’, o Yahoo Notícias conversou com a pesquisadora e advogada na Anis – Instituto de Bioética, Gabriela Rondon. Para ela, as orientações e defesas feitas na audiência pública do último dia 28, caso seguidas, são fortes ataques aos direitos humanos das mulheres brasileiras.
“Essas orientações não podem ser seguidas se estiverem em desconformidade com a Lei. Não é possível que um documento que tem caráter normativo inferior as leis crie obstáculos para proteção de direitos”, endossa a pesquisadora.
Intitulado Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento, a prévia do manual do Ministério da Saúde afirma que todo aborto é crime. Tal afirmação é a mais contestada, já que o aborto legal é previsto em Lei. Outros temas, como o abortamento por telemedicina e o uso do medicamento misoprostol são dados de forma errada ou incompleta.
Conforme previsto no Código Penal (Artigos 124 a 128), o aborto é legal quando a gravidez é fruto de estupro, quando representa risco à vida da gestante ou quando há anencefalia do feto. A Lei não exige qualquer documento para interromper uma gravidez decorrente de estupro – basta o consentimento da mulher ou de seu responsável legal.
“Se trata de um manual infralegal, produzido pelo Ministério da Saúde com vistas a orientar os profissionais da saúde sobre como devem oferecer os serviços previstos em Lei. Infelizmente não cumpre o que propõe, não só porque tem equívocos do ponto de vista jurídico, mas também o uso equivocado de evidências ou informações ausentes para recomendações clínicas”, explica Gabriela.
Em parceria com a Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UnB (Cravinas), o Instituto de Bioética criou uma série de recomendações a profissionais de saúde que atuam em cuidados sexuais e reprodutivos continuem ofertando os serviços de aborto previsto em lei a todos os casos elegíveis (violência sexual, risco a pessoa que gesta ou malformação incompatível com a vida) sem estigma e sem obstáculos adicionais sugeridos por esse documento.
- Não houve qualquer alteração normativa sobre o direito ao aborto no país provocada por tal documento. “Aborto legal” é um termo adequado para designar tal procedimento, visto ser autorizado por lei;
- Nenhum procedimento de aborto previsto em lei deve ser submetido à autorização de qualquer outra instância externa, seja policial, judicial, ou de outra natureza. Trata-se ainda de um procedimento de saúde, como sempre foi, que depende unicamente da avaliação clínica dos profissionais envolvidos nos casos legais e do consentimento da pessoa que gesta;
- Para a oferta do aborto legal a vítimas de violência sexual, não se deve condicionar o cuidado em saúde a nenhuma comunicação externa ao sistema de justiça ou a polícias. A função dos profissionais da saúde é cuidar, não investigar, nem dar início a qualquer investigação. Além de não terem competência para tal, podem colocar a vítima em nova situação de risco ao fazê-lo. As leis brasileiras protegem os profissionais para cumprir sua função de cuidados integrais em saúde, sem risco de responsabilização por aquilo que não lhes compete. Quaisquer informações sobre a violência sexual só podem ser remetidas às autoridades policiais de duas formas (vide art. 3o da Lei no 10.778/03, em conjunto com os arts. 14-D e 14 E da Portaria GM/MS no 78/21)
- de maneira anônima e consolidada, de forma a proteger a identidade das vítimas;
- por expressa requisição e consentimento da vítima.
- A quebra de sigilo profissional é crime (art. 154 do Código Penal), apenas afastado nas estreitas hipóteses acima citadas;
- O fato de que a ação penal para crimes sexuais seja pública incondicionada a representação apenas obriga o Ministério Público a oferecer denúncia para tais casos, mas de nenhuma forma obriga profissionais da saúde, não podendo ser utilizada para vincular de maneira indevida o sistema de saúde e o sistema de justiça criminal (vide lei no 13.718 de 2018);
- Os profissionais da saúde não são submetidos a nenhum controle policial sobre as decisões de interrupção da gestação por risco. Apenas os profissionais em conjunto com a pessoa que gesta têm competência para decidir sobre tais casos;
- Não há limitação legal ao uso da telemedicina para o aborto previsto em lei no Brasil. As maiores autoridades em saúde, como a OMS e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) endossam a segurança e recomendam o uso da telemedicina para garantir o acesso ao aborto nas primeiras semanas de gestação. Interpretação contrária, sem base científica ou normativa, constitui discriminação de gênero e obstáculo indevido no acesso à saúde;
- Não há limite de idade gestacional para a realização do aborto previsto em lei no Brasil, de modo que o cuidado ofertado e os procedimentos utilizados devem sempre ter por máxima as necessidades de saúde da mulher ou menina e a preservação de sua integridade física e mental.
“[a audiência] Foi uma misoginia institucional, pois investiga as estupradas, e não os estupradores. O Congresso Nacional costuma ser subserviente ao conservadorismo bolsonarista, mas também há resistência”, afirmou a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL).
A audiência aconteceu em meio ao caso ocorrido em Santa Catarina, onde uma criança de 11 anos teve o aborto legal negado pela juíza Joana Zimmer, mesmo que a interrupção de gravidez em caso de aborto seja permitido no Brasil. A menina havia procurado o hospital quando estava com 22 semanas de gestação, mas a unidade de saúde se recusou a realizar o aborto sem uma autorização judicial.