Mais da metade das mulheres que buscaram aborto previsto em lei (casos de estupro, risco à saúde ou vida da mãe e anencefalia do feto) não são atendidas. AzMina vai ao cerne da questão e consegue que o Ministério da Saúde prometa atendimento integral em qualquer hospital do país
por Carolina Vicentin
Publicado originalmente na AzMina
Flávia* acordou ainda zonza na casa de um amigo. Estava nua da cintura para baixo e com as pernas sujas. Ao seu lado, havia um rapaz. Perguntou a ele o que havia acontecido e só ouviu silêncio. A estudante de 28 anos foi embora, desnorteada. Não acreditava que havia bebido tanto assim na festa. “Eu era acostumada a beber, às vezes acho que colocaram algo no meu copo”, reflete.
O caso ocorreu no início deste ano, mas ela só voltou a buscar o rapaz quando, semanas depois, sua menstruação atrasou. O jovem confirmou o estupro. E ela estava grávida. Ao contar a história para uma amiga, Flávia ficou sabendo que tinha direito ao aborto legal e gratuito – a lei brasileira não considera crime a interrupção da gravidez nos casos de estupro. O que era para ser a solução, contudo, acabou se transformando no início de uma verdadeira saga.
7% dos casos de estupro resultam em gravidez
Moradora de Goiânia, Flávia foi à Delegacia da Mulher, ao Hospital Materno Infantil (centro de referência do SUS para o atendimento às vítimas de violência sexual na cidade), ao Ministério Público e à Defensoria Pública – em todos esses lugares, mais de uma vez. Também buscou ajuda no 180, a central nacional de atendimento à mulher. Em nenhum momento foi informada de que, para interromper a gestação, bastaria procurar um hospital, sem necessidade de boletim de ocorrência ou alvará judicial, como determina a lei 12.845, que entrou em vigor em 2013.
Foi justamente no hospital, porém, onde ela se sentiu mais desrespeitada: interrogada por vários profissionais, sendo submetida a exames sem que lhe dissessem a finalidade, aguardando por horas a fio, sem nenhum retorno. Segundo Flávia, a diretora do local chegou a perguntar: “quem te disse que fazemos isso (aborto) aqui? Como você está sabendo disso?” Outra profissional questionou qual era a religião da estudante. Ao final, ela teve o pedido de interrupção da gravidez negado.
“Eles me trataram como se eu fosse a pessoa mais ignorante do mundo. Queriam me obrigar a seguir com a gravidez. Tenho certeza que deixaram as crenças deles interferirem no meu atendimento”, reclama Flávia, com a voz embargada. “Tive depressão pós-parto depois do nascimento do meu filho, imagina se eu desse à luz uma criança fruto de um abuso?”, questiona.
Desesperada, ela passou a procurar no Google formas de por fim à gestação. Topou com uma matéria da Agência Pública sobre o descaso enfrentado por mulheres que engravidam de seus estupradores. Escreveu para a agência pedindo socorro. A jornalista que recebeu a mensagem acionou a Artemis, organização não governamental que luta pelo fim da violência contra as mulheres.
Com a ajuda dessa rede de ativistas, Flávia viajou para São Paulo e foi atendida no hospital Pérola Byington, principal centro de referência para o atendimento às vítimas de violência sexual no país. No dia 4 de abril, ela passou pelo aborto, praticamente no limite do prazo para que o procedimento fosse realizado da forma mais simples, por meio da aspiração manual intrauterina (Amiu, a técnica adotada para gestações de até 12 semanas). “Eu senti o maior alívio do mundo”, conta Flávia.
Mesmo com uma história dessas, entretanto, Flávia ainda representa mais a exceção do que a regra ao não entrar na estatística na coluna de quem deixou de receber do Estado o que o Estado, por lei, deveria garantir. Uma pesquisa financiada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres revelou que, entre os anos de 2013 e 2015, mais da metade das mulheres que procuraram o aborto legal não foram atendidas. Em dois anos, das 5.075 mulheres que foram à rede pública para realizar o procedimento, 2.442 (ou 48%) conseguiram fazer valer o direito.
O estudo avaliou 68 centros de referência do Ministério da Saúde para a realização do aborto, dos quais apenas 37 estavam, de fato, atendendo casos. Mais grave que isso: desses 37, 15 realizaram menos de 10 abortos nos últimos 10 anos – sendo que quatro estão localizados em capitais e são os únicos da região. Apesar de o aborto ser legal também em casos de risco de vida da mãe e anencefalia do feto, vale lembrar que 94% das mulheres que buscam o aborto legal sofreram estupro.
Para se ter uma ideia do tamanho do problema, imagine que são 37 serviços em um país com 5.570 municípios e mais de 47 mil estupros registrados em 2014, segundo dados do 9o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Não se sabe ao certo quantos estupros resultam em gravidez, mas uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), com base em dados do SUS de 2011, indicou que o índice gira em torno de 7% dos casos.
A reportagem d’AzMina ligou para o 136, o Disque Saúde, se passando por uma vítima de estupro, relatando uma gravidez e perguntando onde poderia realizar o aborto. Segundo a atendente, “antes de falar disso”, seria necessário “tomar as providências necessárias”. Ao questionar quais seriam essas providências, a atendente respondeu que era preciso registrar a queixa do estupro na delegacia. A informação é incorreta.
Desde 2005, uma nota técnica do Ministério da Saúde (reeditada em 2011) determina que, para a realização do aborto legal, basta o depoimento da mulher na instituição de saúde. Em 2013, essa nota ganhou urgência de lei.
“Os serviços de aborto legal no Brasil não existem”, resume a antropóloga Debora Diniz, do Anis Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Para ela, ou os 68 serviços que eram informados pelo Ministério da Saúde encolheram ou nunca existiram. “Nós temos um número significativo de mulheres que se apresentam, mas não retornam. Elas sofrem tantas barreiras que desistem. Se isso não é uma forma de tortura, eu não sei o que é”, indigna-se a pesquisadora, uma das responsáveis pela pesquisa nacional sobre os serviços de aborto legal.
Embora não haja um levantamento sobre o que acontece com essas mulheres – que podem, inclusive, decidir levar a gravidez adiante –, a carência de informações sobre o direito à interrupção da gravidez em caso de estupro é um indicativo das barreiras enfrentadas pelas vítimas.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que o acesso ao aborto legal está garantido em todas as unidades do SUS com serviço de ginecologia e obstetrícia do país. Ainda de acordo com a pasta, as mulheres vítimas de violência sexual nos 5.570 municípios brasileiros receberão atendimento integral e multidisciplinar, com acompanhamento de psicólogos, assistentes sociais e ginecologistas.
Até o ano passado, o governo federal falava da existência de apenas 68 serviços de referência para atenção integral às pessoas em situação de violência sexual. “Se isso for mesmo verdade, é a maior conquista das mulheres em muitos anos no Brasil”, comemora Ana Lúcia Keunecke, diretora jurídica da ONG Artemis.
Segundo ativistas, no entanto, a declaração do ministério pode ser uma estratégia para que, na prática, essas mulheres não sejam atendidas em lugar nenhum, já que os próprios atendentes, além de desinformados, podem alegar conflito de consciência para não realizar o procedimento. Leia mais sobre o que isso significaria aqui.
A falta de informações sobre o aborto legal motivou a abertura de um inquérito civil pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, órgão do Ministério Público Federal que apura violações dos direitos humanos. “Há indicativo, pelo que observamos até agora, que essas mulheres, não bastasse a tragédia que viveram, ainda podem ser vítimas da atuação ineficiente ou de abandono pelo Estado”, afirma o procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado. “Mas isso será melhor esclarecido durante as investigações.”
Enquanto isso, às vítimas de violência sexual, resta contar com a rede de apoio de ativistas – para as que têm essa sorte. Depois do caso de Flávia – que deu origem a uma denúncia contra o estado de Goiás na Organização dos Estados Americanos (OEA) – a Artemisacolheu outras duas mulheres que enfrentaram situações semelhantes.
A diretora jurídica da organização, Ana Lúcia Keunecke, conta que, nos dois casos, os hospitais se recusaram a atender as vítimas. “A gente sabe que três mulheres não morreram em tentativas de aborto clandestino porque chegaram até nós. Mulheres universitárias, com acesso a internet. Quantas milhares não têm esse tipo de acesso e estão na mesma situação?”, questiona Ana Lúcia.