por Renata Brito e Sarah Di Lorenzo
Publicado originalmente na UOL
O médico estava atrasado. As mulheres se sentaram em silêncio na área de espera da clínica de um bairro rico do Rio de Janeiro até que, superadas pelos pensamentos sobre o que estavam prestes de fazer e sobre o que poderia acontecer com elas, começaram a conversar.
Uma contou que tinha uma relação com um chefe do tráfico e que sabia que ele a obrigaria a ter “seu” filho se soubesse que estava grávida. Outra era uma exitosa mulher de negócios que tinha se separado do pai de seus filhos e que ficou grávida acidentalmente de outro homem. Outra somente chorava.
Uma quarta mulher, Roberta Cardoso, ficou grávida de forma inesperada de seu noivo e sentia que não era suficientemente madura para ser mãe.
“Nesse momento provavelmente eu sabia muito mais sobre suas histórias do que suas próprias famílias sabiam”, disse Cardoso, de 26 anos, em entrevista à Associated Press.
Rosangela Talib, coordenadora do grupo Católicas pelo Direito a Decidir
Como em muitos países, o aborto é tabu no Brasil, uma nação socialmente conservadora com a maior população católica do mundo e uma crescente comunidade evangélica. A interrupção da gravidez é ilegal no país, exceto quando a saúde da mãe está em risco, se ela foi vítima de estupro ou quando o feto sofre um problema cerebral geralmente fatal chamado anencefalia.
Mas ante uma crescente onda de conservadorismo e a preocupação de que o aborto possa ser restringido ainda mais no futuro , as mulheres estão dando um passo adiante, compartilhando suas experiências com a esperança de que se cristalizem em apoios para um maior acesso à prática.
Deixamos de pensar nisso como um tema privado. É um tema público
Estima-se que entre 400 e 800 mil mulheres se submetam por ano a um aborto no Brasil , a maioria deles ilegais. Segundo as estatísticas do Ministério da Saúde, mais de 200 mulheres morreram em 2015 após tentativas de interrupção da gravidez . Se são descobertas, podem ser condenadas a até três anos de prisão, e o médico que realiza o procedimento a até quatro anos, apesar de processos desse tipo serem pouco frequentes.
Mais de 170 mulheres, incluindo importantes atrizes, diretoras e acadêmicas, assinaram um manifesto declarando publicamente que já realizaram aborto. Milhares saíram às ruas para protestar contra as tentativas de restringir o direito ao aborto e mais de 34 mil assinaram petições enviadas ao Congresso.
Quando o Instituto Anis-Bioethics, uma ONG que acompanha problemas de mulheres, fez um chamado no Facebook pedindo depoimentos, recebeu 110 em apenas 19 dias.
Um deles era o de Rebeca Mendes , que estava tentando interromper sua gravidez.
A ONG apresentou uma petição urgente ao STF (Supremo Tribunal Federal) para pôr fim à gestação de Mendes, atraindo a atenção do país e colocando nome e rosto na luta pela legalização da prática. A petição foi negada, e Mendes se submeteu legalmente ao processo na Colômbia .
A onda de depoimentos públicos amplifica um acalorado debate no maior país da América Latina, onde os conservadores temem que o STF legalize o procedimento e as ativistas temem que o Congresso reduza o já limitado direito ao aborto.
Em novembro de 2016, um juiz do STF escreveu que criminalizar a interrupção da gravidez em seu primeiro trimestre viola os direitos fundamentais da mulher , uma decisão que levou à libertação por habeas corpus de dois acusados de gerirem uma clínica de abortos.
Horas depois da decisão, o Congresso criou uma comissão especial para esclarecer a lei. O grupo propôs modificar a Constituição para estabelecer que a proteção da vida começa na concepção . O deputado Sostenes Cavalcante (DEM-RJ) assinalou que a iniciativa contará com o respaldado de todos “os que creem na vida” e o rechaço de “quem quiser matar os indefensos”.
Cavalcante descreveu a iniciativa como um veto total ao aborto, apesar de o deputado que redigiu a proposta afirmar que nada mudaria a atual lei e que só busca deter qualquer tentativa de legalizar a prática no futuro.
Jefferson Drezett, que dirige o departamento de resposta ao aborto e à violência sexual do hospital Pérola Byington em São Paulo, apontou que a cobertura do aborto é insuficiente para quem quer realizá-lo legalmente, por razões que vão desde a má gestão até a pressão de políticos e grupos religiosos.
Se passaram quase 80 anos desde a criação da lei [com as três exceções], e apesar disso não conseguimos que essa lei se tornasse válida em hospitais públicos brasileiros
Jefferson Drezett, diretor do departamento de resposta ao aborto e à violência sexual do hospital Pérola Byington
O apoio à legalização do aborto aumentou, apesar de a maioria dos brasileiros continuarem se opondo.
Uma pesquisa do Datafolha publicada no dia 31 de dezembro deste ano mostrou que 36% dos brasileiros entrevistados eram a favor da descriminalização do aborto, ante 23% em 2016 . Mas 57% seguem contra a prática. A pesquisa entrevistou 2.700 pessoas de 192 municípios do país e tinha uma margem de erro de mais ou menos 2%.
Entre os que querem menos restrições está Raissa Arruda, uma artista de 30 anos que disse à AP: “Eu perdi a vergonha de falar sobre ele [o aborto]… creio que precisamos falar, para poder descriminalizá-lo”.
Arruda tinha 18 anos quando soube que estava grávida, e sua mãe não lhe dirigiu a palavra durante semanas depois que ela contou. Finalmente perdeu o bebê após várias semanas dolorosas sentindo-se julgada.
Quando voltou a ficar grávida um mês depois, não contou a quase ninguém. Não podia suportar a vergonha.
Pediu dinheiro emprestado a um amigo para comprar misoprostol, um medicamento que pode ser usado para provocar um aborto. Desde a década de 1990, o misoprostol, que se usa desde para tratamento de úlceras até para indução de parto, está disponível de forma legal somente em farmácias dos hospitais do país. Contudo, todo mundo sabe onde conseguir o medicamento em Florianópolis, a cidade onde Arruda cresceu.
Djacelina dos Prazeres Chrispim também decidiu compartilhar sua história em uma entrevista à AP.
Uma mulher só aborta porque necessita. Quando a gente fala, desmitifica o aborto
Djacelina dos Prazeres Chrispim, ativista, de 42 anos
Há 15 anos, Chrispim foi a um hospital privado em São Paulo para submeter-se a um aborto. Como mulher negra com uma infância turbulenta, disse que não queria trazer ao mundo um bebê que poderia enfrentar racismo e exclusão.
Apesar de ter comentado sua experiência com alguns amigos e grupos de mulheres nestes anos, Chrispim nunca havia falado dele em público até agora.