Legalização de aborto para grávidas com vírus zika em meio a surto de microcefalia gera debate, de Geovani Santos.
Publicado originalmente por Folha Nobre, em 16 de fevereiro de 2016.
Em meio à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) voltar a ser palco do debate sobre a legalização do aborto no Brasil, pesquisadores ouvidos pelo O Globo divergem sobre a viabilidade jurídica da proposta de liberação do procedimento para mulheres infectadas com o vírus zika no momento em que o país vive um surto de casos de microcefalia.
Prestes a ser encaminhada ao Supremo pela ONG feminista Anis, a ação defende o aborto antes mesmo do diagnóstico de microcefalia e também uma política de assistência social às crianças nascidas com a malformação. O grupo de ativistas e acadêmicos que formula o pedido é o mesmo que encaminhou em 2004 a ação para a legalização do aborto em casos de anencefalia, aprovada em 2012 pelo STF.
“O fundamento principal de nossa defesa nesses casos é o direito à saúde e à dignidade da mulher e o direito ao planejamento reprodutivo”, esclarece a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora e professora da Anis e da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Público e privado
Para o juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal Álvaro Ciarlini, a tentativa de legalizar o aborto pelo risco de microcefalia não tem respaldo constitucional, pois a legislação prevê aborto apenas em casos de estupro e risco de morte da gestante. A microcefalia também não poderia ser comparada à anencefalia, já que não havería incompatibilidade com a vida (argumento usado pelo STF para liberar o aborto de fetos anencéfalos), mas possível comprometimento de atividades cognitivas e motoras.
“Estamos dispostos a pagar o preço do alargamento das hipóteses para aborto em casos de crianças que apresentem algum comprometimento neurológico? É a lógica da eugenia.”
Na contramão, o coordenador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio, Michael Mohallem, acredita que há, sim, espaço para o Supremo adotar a decisão para casos de fetos anencéfalos como precedente para a microcefalia associada à epidemia de zika. Para ele, o tribunal tem ressaltado em decisões recentes a importância de valores como o direito à privacidade e à autonomia. Costuma-se ainda usar como parâmetro legislações liberais de países considerados desenvolvidos, especialmente daqueles onde o aborto para todos os casos já realidade, como Reino Unido, Canadá e França.
“No caso do vírus zika, não há 100% de certeza sobre impossibilidade de vida, mas há alto custo emocional para a mãe e pode caber a ela descontinuar a gravidez para evitar sofrimento. Proteção à vida não significa apenas proteger contra a morte, mas dar condições de vida digna”, diz Mohallem.
Tese da negligência
Não existe regra para definir quais casos são ou não julgados pelo STF e a pressão pública pode agilizar a discussão. Para Mohallem, prevalece o poder de agenda e a sensibilidade do presidente para definir quais assuntos são mais relevantes:
“Se o STF não quiser adotar a ampliação de seu próprio precedente de 2012, ele pode adotar uma nova linha de interpretação, a da omissão estatal. Á mulher não pode ter a responsabilidade de carregar o ônus da omissão do Estado, que não cumpriu obrigação de evitar a epidemia.”
Débora Diniz, da Anis, também vê negligência na atuação do Estado pela “incapacidade de exterminar o Aedes aegypti nos últimos 30 anos”. “Por mais que o zika seja um vírus recente no Brasil, o descaso em conter seu vetor já é suficiente para caracterizar negligência do Estado”, diz a antropóloga.
Para Ciarlini, o argumento não é consistente: o Estado não responde pela situação endêmica, pois não estaria demonstrado que o Brasil poderia ter erradicado o mosquito se tivesse tomado outras providências.
Carlini também argumenta que o Supremo deve se debruçar apenas sobre casos para os quais as normas jurídicas não apresentam uma solução. Não haveria respaldo para uma alteração tipicamente legislativa. Caberia ao Congresso tomar a decisão a partir do debate “completo” e “adequado” na esfera pública.
“É pouco provável que o STF vá errar nessa questão. Ser mais ou menos conservador não dá ao STF o poder e legitimidade para a exclusão de licitudes. Ele deve cumprir a Constituição e garantir a separação entre os poderes”, conclui o juiz.