Profissionais de saúde que atuam em serviços de abortamento legal criticam estudos usados para projeto de lei que cria Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto; iniciativa é capitaneada pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves
Por Leda Antunes
Publicado originalmente em O Globo
O governo federal tem um plano para o dia 8 de outubro. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, quer que a data seja marcada pelo Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto. O projeto de lei foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada. O objetivo, segundo a pasta, é “prestar informações de interesse público, com base em evidências científicas” sobre supostos riscos da interrupção da gravidez na saúde física e mental das mulheres.
As evidências citadas pelo ministério, no entanto, são questionadas por profissionais de saúde que atuam nos principais serviços de abortamento legal do país e que repudiam a iniciativa. Para estes especialistas, os dados sobre os riscos do aborto que o governo pretende divulgar, caso o projeto de lei seja aprovado e a data instituída, foram retirados de estudos que apresentam uma série de falhas e não têm rigor científico.
As supostas consequências da prática do aborto são citadas brevemente na nota que abre a consulta pública sobre o projeto de lei, realizada entre abril e maio no site do Governo Federal, e foram detalhadas pelo ministério à reportagem.
Também a pedido da reportagem de CELINA, quatro profissionais de saúde que atuam nos serviços de abortamento legal do país e pesquisam sobre o tema analisaram as publicações citadas como referência pelo ministério e a conclusão foi unânime: os dados não são confiáveis, não têm rigor científico e outros estudos de referência provam o contrário das alegações da pasta sobre a interrupção voluntária da gravidez.
— É preciso esclarecer que esse governo utiliza alguns dados da ciência de maneira distorcida. A especialidade desse governo é pegar o que lhe interessa e chamar de evidência científica — critica a ginecologista Helena Paro, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital das Clínicas de Uberlândia (Nuavidas/UFU).
‘Risco está no aborto inseguro’
No Brasil, a interrupção da gravidez é permitida se for decorrente de estupro, se houver risco de morte para a mulher ou em caso de anencefalia fetal. Mas segundo o MMFDH, as campanhas abordarão os riscos a que as mulheres estão sujeitas “ao realizar qualquer procedimento abortivo”, mesmo os previstos em lei.
Utilizando um estudo feito pelo médico australiano Gregory Pike e divulgado em 2018 pela Society for the Protection of Unborn Children (SPUC), entidade britânica que se define como a mais antiga organização “pró-vida” do mundo, a pasta pretende alertar que “as mulheres têm mais probabilidade de morrer após um aborto em comparação a dar à luz”.
Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, o CDC, mostram o contrário. Nos EUA, o aborto é permitido por lei desde 1973. Em 2017, a taxa de mortalidade materna no país foi de 17,3 a cada 100 mil nascidos vivos. Já o número de mortes causadas por abortos legais é tão baixo — em 2017 foram identificadas apenas duas — que a taxa de mortalidade é calculada em períodos de cinco anos consecutivos. Entre 2013 e 2017, foi de 0,44 mortes a cada 100 mil abortos legais realizados.
— Não há estudo desse tipo no Brasil, porque sequer contabilizamos 100 mil abortos legais no nosso registro histórico. Se tem uma média desde 2008, quando isso começou a ser contabilizado, de 1.600 abortos legais por ano e você não vai encontrar uma morte — diz Helena Paro.
O ginecologista Olímpio Barbosa de Moraes Filho concorda:
— O abortamento é seis a oito vezes mais seguro que o parto. O risco de morte está no aborto inseguro, quando a mulher, geralmente pobre e negra, faz o abortamento sem condição nenhuma, sem assistência médica. Por isso é preciso tornar o aborto seguro.
Presidente da Comissão Nacional Especializada em Assistência Pré-Natal da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), Moraes Filho reforça a posição da entidade contrária a iniciativa do governo de criar o Dia do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto.
— Esta é uma política misógina e negacionista. Se as mulheres brasileiras fossem canadenses, não estariam morrendo por abortos inseguros, teriam acesso a mais métodos contraceptivos de longa duração e à educação sexual nas escolas. Com esse projeto, o governo brasileiro não dá nenhuma condição baseada em evidência para minorar o problema do aborto inseguro — diz.
O MMFDH cita ainda dois estudos publicados apenas como capítulos de livros com viés contrário ao aborto para elencar consequências físicas da interrupção da gravidez, um deles escrito por Elizabeth Kipman Cerqueira, coordenadora de bioética do movimento “Brasil sem Aborto”. A pasta elenca riscos de hemorragias, infecções e lesões uterinas, infertilidade, gravidez ectópica e partos prematuros posteriores.
— Esses capítulos de livro não são revisados por pares, no máximo por alguém da editora que não é especializado no assunto, e cada editora tem aí seus conflitos de interesse. Eles são claramente enviesados e não há rigor metodológico nestas alegações — afirma Paro.
Ela cita um estudo da American College of Obstetricians and Gynecologists, publicado em 2015, que acompanhou quase 55 mil abortos nos EUA e não identificou nenhuma morte. A taxa de complicações mais graves foi de 0,23% — foram identificados 29 abortos incompletos, 39 casos de infecção, 35 de hemorragia e três de perfuração intrauterina.
Além deste, estudos prévios indicaram um risco de infecção e hemorragia de 0,9 a cada mil abortos induzidos. Para efeito de comparação, uma análise feita pela USP Ribeirão Preto e publicada na revista científica “Lancet” em 2013 indica que, para a manutenção da gravidez, o risco de infeção grave é de 8 a cada mil e de hemorragia chega a 27 a cada mil.
— O risco de vida para a mulher em qualquer lugar do mundo está diretamente relacionado com o fato de ser um aborto inseguro, feito em condições péssimas — afirma o ginecologista Thomaz Rafael Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA). — É o aborto inseguro que traz eventuais complicações. Quando não presta assistência adequada porque a lei não permite, acaba jogando a paciente a Deus dará. E é aí que há o risco. O aborto seguro, feito em condições técnicas adequadas, tem índice de 99% de resolução a contento.
O governo também pretende alertar para o aumento da incidência do câncer de mama entre mulheres que tiveram abortos, mas estudo posterior ao citado pelo MMFDH sugere que as evidências não são suficientes para indicar essa correlação.
Impactos na saúde mental
Segundo o ministério, além das consequências físicas, a futura campanha pretende alertar para as “sequelas na psique feminina” que um aborto induzido pode causar. A pasta cita o estudo de Gregory Pike e um metaestudo — que revisa achados de pesquisas anteriores — de Priscilla K. Coleman, publicado em 2011 no British Journal of Psychiatry.
De acordo com as publicações, o aborto induzido aumenta o risco para transtornos de ansiedade, depressão, abuso de álcool e maconha. Além disso, afirmam que mulheres que se submeteram ao procedimento experimentaram “dor significativa” e que o risco de suicídio para elas seria seis vezes maior.
A ginecologista Helena Paro questiona as duas publicações em sua metodologia e em seus resultados.
— O estudo de Colleman foi publicado numa boa revista. Mas dos 22 estudos que ela revisou, 11 são dela. Também não há informações sobre metodologia ou sobre que tipo de medida de ansiedade e depressão foi utilizada, por exemplo — explica, ressaltando que estudos mais amplos e de maior rigor metodológico obtiveram resultados contrários.
Paro cita uma revisão feita em 2008 por uma força-tarefa da Associação Americana de Psicologia (APA) que indicou que não existe relação entre o aborto induzido e qualquer risco para a saúde mental das mulheres. Ainda segundo a APA, o sofrimento psíquico após um aborto está relacionado a problemas de saúde mental pré-existentes e não ao procedimento em si.
Outro estudo mais recente, realizado pelo programa de pesquisa em saúde reprodutiva da Universidade da Califórnia, em São Francisco, e publicado em 2016 na revista “JAMA Psychiatry”, reforça as constatações da APA. A pesquisa se tornou uma referência por ter se esforçado em evitar as armadilhas metodológicas de estudos anteriores. Outros estudos costumam comparar mulheres que abortaram com mulheres que optaram por dar à luz, dois grupos considerados tão diferentes que muitos especialistas afirmam que pouco pode ser aprendido ao compará-los.
Ao longo de cinco anos, os pesquisadores acompanharam mil mulheres que procuraram 30 serviços de abortamento legal em 21 estados americanos e descobriram que aquelas que conseguiram interromper a gravidez não experimentam mais depressão, ansiedade, baixa autoestima ou insatisfação com a vida do que aquelas que tiveram o procedimento negado.
O estudo constatou, na verdade, que os sintomas de sofrimento psicológico aumentaram apenas entre as mulheres que tentaram fazer um aborto, mas não conseguiram porque ultrapassaram a idade gestacional limite imposta pela clínica em que foram atendidas — esse limite varia conforme a clínica e o estado. Mas esse sofrimento teve curta duração e, após seis meses, a saúde mental de todas as mulheres entrevistadas não teve diferenças relevantes.
— Todos os resultados encerram qualquer dúvida a respeito da associação do aborto induzido a riscos para a saúde mental e física das mulheres — explica Paro.
— O risco para a saúde mental é aumentado se a mulher não tem a escolha de interromper uma gravidez indesejada. O sofrimento está associado a outras questões. Na gravidez decorrente de estupro, por exemplo, está associado à violência que essa mulher sofreu — afirma a psicóloga Daniela Pedroso, que trabalha há 23 anos com meninas, adolescentes e mulheres sobreviventes de abuso sexual.
Para Pedroso, a iniciativa do governo pode afastar ainda mais as mulheres dos serviços especializados de atendimento a vítimas de violência sexual.
— Pintam os serviços de violência sexual como “serviços de aborto”, mas não é só isso. A gente está lá para fazer valer o direito dessa mulher e entende a gravidez como mais um dos agravos dessa violência. Mas não é uma imposição, é uma opção. Ela só vai abortar se quiser — explica.
O serviço de aborto legal e seguro deveria ser oferecido em qualquer estabelecimento de saúde com serviço de ginecologia e obstetrícia, mas fica restrito a unidades de referência, como o Hospital Perola Byington, em São Paulo, o Nuavidas, em Uberlândia, e o Cisam, no Recife.
— Quando o governo faz um movimento como esse, deixa de informar sobre esse serviço e esse direito legal e acaba empurrando a mulher, que geralmente é a mulher preta, pobre e periférica, para o abortamento clandestino e inseguro — completa Pedroso.