Gays querem (e devem) doar sangue, de Debora Diniz.
Publicado originalmente por HuffPost Brasil, em 17 de junho de 2016.
Esse é daqueles temas que se fizéssemos uma pesquisa populacional – “você é contra ou a favor de um homem homossexual doar sangue?” – encontraríamos uma avassaladora maioria dizendo “contra, homossexuais não devem doar sangue”. O que moveria essas pessoas? Medo e falta de informação; ou, se posso ser mais rude nas palavras, discriminação e ignorância.
Medo de contrair doenças em uma transfusão de sangue é um sentimento razoável, e as políticas de saúde devem fazer o melhor para evitar riscos desnecessários: testar o sangue para várias doenças antes de transfundi-lo é uma dessas medidas; outra é respeitar a janela imunológica, isto é, o tempo necessário para que os testes sejam eficientes ao verificar se há doenças circulando no sangue. Hoje, o tempo da ciência é em torno de quinze dias. Ainda assim, pela lei brasileira, um homem que fez sexo com outro homem está proibido de doar sangue por um período de doze meses após a relação sexual.
O Supremo Tribunal Federal acabou de receber uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com a seguinte tese: proibir homens gays de doarem sangue é uma ameaça à dignidade. O Ministro Edson Fachin deu uns poucos dias para o Estado brasileiro se justificar: quais seriam as razões para que homens gays não possam doar sangue?
Não sei qual resposta a Anvisa ou o Ministério da Saúde apresentarão, mas não há outra senão admitir que se trata de discriminação. As normas brasileiras são ultrapassadas, as referências científicas que as fundamentam não são confiáveis e adotam terminologias, no mínimo, desrespeitosas às pessoas que se movem ao altruísmo da doação. E o pior: só se fala de homens que tiveram relações sexuais com outros homens.
Por trás da proibição está a história da epidemia da Aids. No passado, falou-se em grupos de risco para o HIV – os gays foram, durante um longo período da epidemia, o grupo vulnerável ao adoecimento. Tratava-se de um grupo de pessoas específicas – os gays -, e não de quaisquer pessoas que praticassem sexo de forma insegura. “Sexo inseguro” não se refere aos malabarismos de filmes pornôs, mas apenas ao intercurso sexual sem o uso de camisinha. O erro ao confundir grupo de risco com comportamento de risco é claro: qualquer pessoa – até mesmo aquelas com votos de castidade – que se relacionar sexualmente com outra pessoa do mesmo sexo, mesmo que seja apenas uma vez, entrará na lista dos tipos com comportamento de risco se estiver desprotegiga. Muito embora esse possa ser um sujeito fora de qualquer estereótipo de “grupo de risco”.
O que importa para as políticas de saúde não é se alguém pratica sexo com uma ou várias pessoas, com pessoas do mesmo sexo ou sexo diferentes, mas como se protege nas relações sexuais. A pergunta central para a saúde pública e para a segurança do sangue é se o doador é alguém com cuidados de saúde nas práticas sexuais: desimportante é saber como se identifica no campo sexual ou quais são suas preferências de prazer. A pergunta para proteger os pacientes adoecidos à espera de sangue é mais simples: “você usa camisinha ou não nas relações sexuais?”. Uma mulher com parceiro masculino, mesmo que fixo, que não pratique sexo seguro pode ser uma doadora arriscada – seu sangue deverá se submeter a todos os protocolos de segurança antes de ser transfundido.
Esta é uma ação simples e urgente: faltam doadores de sangue no Brasil. Há uma necessidade de saúde pública. Mas há outra urgência: a discriminação contra gays se esconde em subterfúgios que nos amedrontam. Classificar a qualidade de um sangue para a doação a partir das identificações sexuais de seus doadores é mover-se pela moral e não pelas boas práticas de saúde. Mas a discriminação faz mais do que impedir a solidariedade de homens gays doadores: abre portas para escambos travestidos de doação. O comércio de sangue é proibido no Brasil; nossa política acredita que a doação é um gesto altruísta. Há estados no País, no entanto, que isentam doadores de sangue de taxas de inscrição em concursos públicos. Isso é ou não comércio de sangue?
Se o Ministro Fachin tem mesmo dúvidas sobre as razões para a proibição da doação, respondo com clareza – não há justificativa de saúde pública. O desafio não será identificar o equívoco – ele está claro na peça inicial apresentada à Corte. Aguardo com ansiedade para saber quais serão os argumentos para a revogação das normas: atestar a ciência ultrapassada é caminho mais fácil; é preciso dar o nome correto, presente na Constituição Federal – proibir gays de doarem sangue é discriminação.