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Publicado originalmente por Justificando, em 25 de julho de 2016.
Joyce Fernandes é uma educadora. Seja como professora de história, rapper ou ativista pelo empoderamento de mulheres negras e de mulheres gordas, ela assume a responsabilidade de provocar o debate e desnaturalizar opressões. Como Preta Rara, seu nome artístico, questiona rimando na música Graças ao Arauto: “Onde estava a vergonha na cara do contratante/ Que escolheu cabelo liso e rejeitou os meus turbantes/ Fui intitulada mão-de-obra barata/ Não me enverguei graças ao ensinamento de Afrika Bambataa.”
Há poucos dias, um novo projeto surgiu quase sem querer: Joyce compartilhou em seu perfil pessoal no Facebook um episódio de humilhação que sofreu quando trabalhava como empregada doméstica. Pretendia desabafar sobre a patroa que a impedia de comer a comida que a própria Joyce cozinhava: era obrigada a trazer marmita e talheres próprios para “manter a ordem da casa”. O post recebeu inúmeras respostas, curtidas e compartilhamentos. Em pouco tempo, Joyce estava colecionando relatos como o seu, e resolveu divulgá-los em uma nova página, chamada Eu Empregada Doméstica, que agora publica diariamente dezenas de histórias de trabalhadoras domésticas.
A página é uma aula sobre o racismo que mantém a “ordem da casa” brasileira. Trabalhadoras domésticas e filhas e netas de mulheres que dedicaram a vida ao cuidado de casa alheia contam casos absurdos e cotidianos de violação de direitos, assédio, desrespeito e violência sofridos no trabalho. O conjunto de relatos, fruto da coragem de mulheres que decidiram não se calar mesmo diante de lembranças dolorosas, traz pistas dos resquícios da escravidão que estrutura o trabalho doméstico atual no Brasil. Sob o discurso ambíguo das elites, a casa é um instrumento de racialização: em sua maioria negras, as trabalhadoras são “quase da família” quando a questão é cuidar integralmente das crianças, morar em um quartinho de fundos na casa dos patrões e não ter horário para parar de trabalhar, mas são trabalhadoras subalternizadas quando obrigadas a só usar elevadores e entradas de serviço, a ter louça, banheiros e comida separados, a usar uniformes brancos.
Joyce explica: “Infelizmente, para nós, mulheres negras, ser empregada doméstica é algo hereditário. Minha mãe, minha tia e minha avó foram empregadas domésticas. Não é possível dissociar isso da nossa história de escravidão.” O Brasil tem o maior número de trabalhadores domésticos do mundo: mais de sete milhões. Dentre eles, cerca de 60% são mulheres negras. Até poucos anos atrás, a herança da escravidão na precarização do trabalho doméstico estava consolidada na Constituição Federal, que excluía alguns direitos trabalhistas daqueles garantidos à categoria. Só em 2013, com a aprovação da chamada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Domésticas é que houve equiparação de direitos. Apenas em 2015, com a regulamentação da PEC, as trabalhadoras passaram a ter garantias como adicional noturno, obrigatoriedade do recolhimento do FGTS por parte do empregador e indenização em caso de demissão sem justa causa.
A página Eu Empregada Doméstica é uma oportunidade de conhecer a resistência diária de mulheres negras ao racismo caseiro a partir de suas próprias narrativas. Joyce Fernandes sabe que não temos direito de fingir não saber: “Quero expor o que está sendo varrido debaixo do tapete.” Na música Falsa Abolição, Preta Rara arremata: “Ainda somos escravos mesmo não querendo/ A luta continua só você não vê/ Abra os olhos que ninguém abrirá pra você”.
Sinara Gumieri é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica