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Debora Diniz relata ameaças por frequentadores de fóruns da deep web

16 de março, 2019

“Recentemente, Lola [primeira blogueira feminista do Brasil] e eu erámos ofertadas em anúncio: quem nos matasse receberia uns tantos bitcoins, a moeda virtual”

Debora Diniz

Publicado originalmente na Marie Claire

As imagens do massacre na escola de Suzano são assombrosas. Em minutos, os dois atiradores matam e morrem. Em desespero, saímos à procura de explicações. Como seria a família? E a mãe, quem era? Existia pai? Sofreram bullying na escola? Nem se ouvíssemos os matadores conseguiríamos explicar o ocorrido – é um daqueles eventos inomináveis da vida social. São como parênteses vazios de palavras, diria Piedad Bonnet. Porém, se não temos ferramentas analíticas para explicar o absurdo, se não pelo apelo à loucura ou a teses contra factuais, temos informação suficiente sobre como esses indivíduos se encontram, como compartilham o ódio, como planejam a matança.

Há comunidades de ódio que florescem na clandestinidade virtual. Regra geral, são comunidades masculinas, de homens jovens ressentidos da história. São homens que desdenham das mulheres, pois as imaginam na casa ou como procriadoras; são homens que discriminam os gays, pois não suportam masculinidades alternativas. Feministas são seres abjetos, já que são fontes permanentes de ameaça ao patriarcado. Apesar desses traços comuns, as comunidades são caóticas e óbvias. Caóticas porque não há líder ou estrutura formal, e óbvias porque são limitadas a um conjunto de valores e práticas.

O encontro ocorre na internet profunda (deep web), um território sem lei ou vigilância, de ameaça e risco permanente a quem se arrisca por ali passear. Os valores do ódio são cultivados entre anônimos, travestidos de pseudônimos ou alcunhas. No amplo território da internet profunda, os indivíduos se encontram por temáticas odiosas – armas, misoginia, homofobia, nazismo, militarização, etc.

Os chans são as unidades do encontro, como uma sala virtual de troca de informações, mensagens, anúncios de ódio. Recentemente, Lola [primeira blogueira feminista do Brasil] e eu erámos ofertadas em anúncio: quem nos matasse receberia uns tantos bitcoins, a moeda virtual. Os chans não são grupos, são pontos de encontro para o compartilhamento de identificações, práticas e estratégias, o que chamamos no espaço social concreto de sociabilidade. Alguns se auto identificam como “Incels” (celibatários involuntários), outros como “Mascus”, uma referência viril aos corpos. A sociabilidade dos chans de ódio se dá por uma exacerbação de uma masculinidade tóxica, com excesso de agressões mútuas, com linguagem chula, e uns poucos participantes assíduos que buscam uma posição de comando nas relações encobertas. Não há hierarquia, por isso a traição é comum entre seus membros. Há alcunhas que permanecem nos chans e acabam por conquistar um instável prestígio pela intensidade do ódio que destilam. Não há como saber se uma mesma alcunha é compartilhada por diversos usuários no tempo.

São nesses encontros que imagens de massacres são partilhadas, acesso às armas são oferecidos e mesmo o vocabulário é aprendido. Há um linguajar típico dos homens de ódio, por isso as mensagens de ameaça que recebo são tão semelhantes às recebidas por outras vítimas. O texto é um misto de vocabulário de jogos eletrônicos de guerra, de adjetivações excessivas com o objetivo de amedrontar multidões ou alegorias religiosas. O alvo das ameaças são pessoas com poder de por multidões em risco – no meu caso, as ameaças de morte não eram apenas a mim, mas à universidade onde era professora.

Há uma distância entre o mundo caótico dos chans e a realidade da matança. Os indivíduos que fazem a passagem do real ao virtual são aqueles afetados pelo contágio do ódio, sentem-se como convocados à solução final – em geral, são tipos recém-chegados ao ecossistema do ódio. Por isso, é tão difícil prevê-los e contê-los: operam pela covardia da dúvida, pois ameaçam a tragédia, mas se escondem na clandestinidade de pseudônimos e barreiras virtuais. É verdade que há dificuldades na identificação dos indivíduos de carne e osso, mas não é impossível localizá-los; exige perseverança na caçada. A tenho de sobra.

O ódio que acompanhamos em comunidades virtuais, como Twitter e Facebook, é a superfície do que acontece na internet profunda. Há sujeitos que operam na clandestinidade e na legalidade; há muitos que somente na legalidade, porém que sofrem influência do que ocorre do submundo da virtualidade. Muitos dos que defendem o livre direito de expressar o ódio, como fazem alguns tipos contra mim em redes sociais legais, movimentam esse ecossistema horrendo de violência – conscientes ou não, são agentes de provocação de tragédia de Suzano. Não há sujeito odioso que possa reclamar a inocência de suas palavras. Por isso, é urgente rejeitarmos o ódio como liberdade de consciência e encontrarmos formas de contê-lo. As cenas do massacre de Suzano devem ser vistas como uma prova do contágio entre o virtual e o real – há risco na masculinidade tóxica, e as vítimas serão sempre gente vulnerável e inocente.

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