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Debora Diniz: “É hora do STF responder o que significa uma epidemia para a vida das mulheres”

23 de abril, 2020

Antropóloga fala sobre ação que garante direito ao aborto para mulheres vítimas do zika, que será votada nesta semana pelo Supremo

Por Helena Bertho

Publicado originalmente no site da Revista Azmina

Em meio à pandemia do coronavírus, o Supremo Tribunal Federal (STF) pautou a questão de direitos reprodutivos de mulheres durante uma epidemia. Mas não da covid-19, e sim da última que assolou as brasileiras: o zika vírus. O STF colocou em sua pauta de votação do dia 24 de abril a ação que garante direitos para as pessoas afetadas pelo zika, que chegou ao Brasil em 2015. O agendamento causou grande comoção nas redes sociais, porque entre os pedidos da ação está a permissão para que mulheres afetadas pelo vírus possam interromper a gravidez caso essa lhe cause sofrimento mental.

“Eu adoraria imaginar que a Carmen Lúcia [ministra do STF] colocou essa ação em pauta, porque ela fez a conexão entre as duas epidemias. Passaram quatro anos e essa casa não respondeu [a questão do zika], é hora do STF responder o que significa uma epidemia para a vida das mulheres”, diz a antropóloga Debora Diniz, uma das fundadoras do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

 

Debora é autora do livro “Zika, do sertão nordestino a ameaça global” e também uma das principais pesquisadoras sobre aborto no Brasil, atuação que a obrigou a viver fora do país após sofrer ameaças. Em 2016, a Pesquisa Nacional de Aborto realizada pela Anis mostrou que pelo menos uma em cinco mulheres no Brasil já fez um aborto.

Para, ela, a pandemia do coronavírus pode ser comparada em alguns pontos à epidemia do zika. “As duas epidemias se expressam pelas desigualdades prévias que vivíamos, nossos privilégios ou desigualdades nos protegem ou nos fragilizam mais.”

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Vale destacar: o zika não desapareceu. Apenas nos três primeiros meses de 2020, foram registrados 227 novos casos de crianças com suspeita da síndrome congênita do zika vírus.

A ação do zika que será analisada pelo STF faz outras demandas, como acesso a Benefício de Prestação Continuada (um salário mínimo para pessoas com deficiência), atendimento de saúde especializado, informação atualizada e segura sobre o zika, planejamento familiar para as populações de risco e cuidados em saúde mental para as mulheres. Ela foi proposta pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), com suporte técnico da Anis.

Em entrevista à Revista AzMina, a pesquisadora fala sobre o encontro do coronavírus com o zika, sobre o que significa a possibilidade de aborto para as vítimas do vírus e também sobre as possibilidades de mudanças sociais que podem vir da pandemia.

 

“As epidemias, e uma pandemia, têm que ter no centro das suas respostas a saúde reprodutiva”, diz pesquisadora Debora Diniz (Foto: Arquivo pessoal)
Revista AzMina: Você acha que a epidemia do zika e a pandemia do coronavírus são comparáveis?

Debora Diniz: Essas duas epidemias têm uma falsa presunção de universalidade sobre os ricos e o adoecimento. Qual a falsidade? Tanto em zica quanto em covid-19 nós descrevemos os riscos de adoecimentos como possíveis para todas as pessoas, em abstrato. Mas, na verdade, quando olhamos concretamente, vemos que há determinantes sociais para vulnerabilidade e adoecimento. Nesse sentido, elas são comparáveis. Porque as duas epidemias se expressam pelas desigualdades prévias que vivíamos, nossos privilégios ou desigualdades nos protegem ou nos fragilizam mais.

O segundo ponto em que nós podemos pensar essas duas epidemias em paralelo são as mulheres como as mais vulneráveis quando essas múltiplas desigualdades se encontram. Quanto mais frágil essa mulher estiver dentro das complexidades e das desigualdades, maior a fragilização e a exposição ao risco e aos efeitos desse cruzamento falso entre economia e saúde pública. Falso porque desde sempre, saúde pública foi uma boa economia e a economia sempre dependeu da saúde das pessoas para serem bons trabalhadores.

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AzMina: O zika vírus causou muito menos comoção. Salvas as proporções, porque você acha que não motivou tanto interesse público?

Debora: Essa pergunta é muito interessante. Zika teve uma imensa comoção. Qual foi a diferença? O zika teve uma explosão de comoção quando começou a se retratar as criancinhas de cabecinhas pequenininhas, e quando existia uma hipótese disso ser uma ameaça global.

Onde essa curva de comoção faz um pico e volta para baixo? Quando se viu que isso estava confinado no sertão dos miseráveis, às anônimas da epidemia e isso ficou entre elas. O que é  diferente agora.

AzMina: Hoje vemos o encontro entre essa epidemia de zika e a pandemia. O que isso causa?

Debora: A primeira consequência é que a pandemia do coronavírus chega ao Brasil numa continuidade dos casos de zika. O zika nunca nos abandonou. A primeira coisa é nomear dessa maneira, porque sequer as pessoas sabem. Foram 227 casos de crianças suspeitas notificadas em 2020. Isso até o começo de março, são quase 3 novos casos por dia dia. Então a pandemia chega com um silenciamento persistente não só da continuidade do risco, mas também da sobrevida dessas crianças, dessas mulheres, dessas famílias.

Mas como a epidemia de covid-19 pode tocar essa população em particular? Primeiro, quando uma primeira mulher dessa adoecer e não tiver como cuidar do bebê. Porque esses são filhos que dependem completamente dessas mulheres para sobreviver no cotidiano.

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Acompanho vários grupos de whatsapp com essas mulheres e é conversa o tempo todo sobre acesso a renda emergencial, sobre ausência de medicamentos como os anticonvulsivantes. Porque com a suspensão de vários serviços de saúde básica essas mulheres estão desassistidas.

Há o medo também de quando essas crianças adoecerem. São crianças com dificuldades respiratórias muito grandes. As mulheres temem que seus filhos sejam preteridos no sistema de acesso a UTI. Ainda mais diante da declaração do novo Ministro da Saúde [Nota da redação: em vídeo de 2019, Nelson Teich diz que com recursos limitados é necessário fazer escolhas, como ter que salvar um adolescente que “tem uma vida inteira pela frente” ou um idoso que “pode estar no final da vida”]. Isso vale para outras analogias sobre vidas que merecem ter acesso aos cuidados intensivos.

Essas mulheres vivem uma antecipação de uma tensão  muito grande.

AzMina: Qual a importância de o STF ter colocado em pauta nesse momento a votação da ação por direitos para pessoas afetadas pelo zika?

Debora: Eu adoraria imaginar que a Carmen Lúcia [ministra do STF] colocou em pauta, porque ela fez a conexão entre as duas epidemias. Passaram quatro anos e essa casa não respondeu e é hora de responder o que significa uma epidemia para a vida das mulheres. Eu espero que ela tenha feito essa conexão.

Espero e que não seja por nenhuma razão para desqualificar como perda de objeto da ação. Como pela questão da pensão vitalícia, que considero um engodo [Nota da redação: Debora avalia que o acesso à pensão, aprovada em setembro de 2019, veio ligado a restrição de outros direitos a essas famílias].

AzMina: Entre os pedidos da ação, está o direito a interromper a gravidez. Por que pedir o aborto especificamente para mulheres vítimas de zika?

Debora:  Temos uma doença da qual não se sabe onde está o risco, o vetor é o mosquito e os determinantes sociais de adoecimento se mantém no Brasil. Isso pode levar a mulher a um estado de sofrimento mental, ao se ver grávida, já com um filho afetado por zika e sabendo que o risco continua.

O pedido é: se uma mulher que está adoecida por zika e está em sofrimento mental, que ela possa interromper a gestação. Porque o sofrimento mental causado pelo risco do adoecimento naquele momento da epidemia era algo extremamente marcado. Isso não desapareceu. São mulheres que vivem onde as situações de vulnerabilidades continuam instauradas.

AzMina: E como isso tem paralelo com a covid-19?

Debora: As epidemias, e uma pandemia, têm que ter no centro das suas respostas a saúde reprodutiva. Então no pedido ao STF, nós colocamos acesso à informação e métodos contraceptivos de longa duração. Isso é igual com coronavírus, as mulheres não devem precisar ficar indo ao posto todo mês para ter acesso a anticoncepcionais. Os serviços de aborto legal em São Paulo fecharam em um momento. Ela tem que ter direito a saúde sexual e reprodutiva. Inclusive direito ao aborto em casos de estupro por telessaúde. Saúde reprodutiva tem que fazer parte de qualquer resposta de proteção essencial de saúde.

AzMina: A ação fala em possibilidade de escolher não continuar com “gravidez que lhe causa intenso sofrimento”. Isso não se aplica somente ao zika, né? Você acredita que caso passe, isso pode ser base para ampliar o acesso ao aborto?

Debora: Sim e não. Não, porque o pedido foi muito específico sobre zika e pode ser lido em termos estritamente processuais, como a matéria que o movia, como foi o caso de anencefalia. E sim, a depender da sensibilidade interpretativa dos juízes do supremo.

AzMina: Permitir o aborto somente em casos de zika e não em todos os casos em que a gestação causa intenso sofrimento à mulher não seria uma forma de eugenia?

Debora: A eugenia está na pergunta. Porque o pedido não fala que seja em casos de síndrome congênita no feto. É de sofrimento mental na mulher. Nós sequer sabemos se o feto foi afetado ou não. A eugenia está na presunção de que a mulher aborta porque o feto está afetado pelo zika. Se ela vai interromper é porque ela está em sofrimento.

Essa é uma pergunta que reflete uma incapacidade de reconhecer que as mulheres possam adoecer por causa de uma gravidez. Que a gravidez pode ser sim uma experiência de sofrimento das mulheres, principalmente para aquelas em condições de desamparo.

AzMina: Por que aborto é uma das principais pautas da sua ação política? Por que você considera o direito ao aborto importante e central?

Debora: Quando uma mulher pode decidir quando, como e com quem ela vai ter um filho, ela toma uma decisão sobre seus projetos de vida presentes e futuros, não são sobre maternidade. O projeto de filiação toca todas as esferas da vida de uma mulher, do trabalho à saúde, dos relacionamentos amorosos à casa.

Talvez não haja nenhuma outra situação tão determinante para a igualdade de gênero quanto o poder de uma mulher de tomar decisão. Falar sobre direito ao aborto é falar sobre o futuro das mulheres e das meninas.

AzMina: Em um artigo do início de março, você citou o filósofo italiano Giogio Agamben, dizendo que “há um verdadeiro ‘pânico coletivo’, cujo exagero da resposta seria, na verdade, um pretexto de governos autoritários para mover o ‘estado de exceção”. Olhando para como o cenário mudou desde então, como você pensa sobre isso?

Debora: Eu diria que todas as respostas agora necessitam de análise país a país. O que eu sim consigo dizer é que nenhum de nós sabemos como vai ser o futuro pós pandemia. Não só das forças autoritárias e populistas, como é na Hungria e Venezuela, como é em alguma medida no Brasil e nos Estados Unidos, mas também certas fraturas dentro dessas forças que se consideravam hegemônicas e unidimensionais.

Estamos vendo os Estados Unidos terem que oferecer uma resposta de  proteção social de dois trilhões de dólares, que é quase o PIB brasileiro. Isso era inimaginável três meses atrás. Quando vemos um governo Bolsonaro, que acabou de aprovar uma reforma da previdência, aprovar a renda mínima emergencial… Ele não, o Congresso. Enfim, é a prova de que está sendo lançado algo que não estava nos planos e que transforma a composição do Estado.

Então quando digo que vamos chegar ao mundo pós pandemia com maior circulação de valores feministas como formas de bem viver, eu não tenho como dizer que o mundo vai ser mais feminista ou mais autoritário. O que temos agora é uma circulação de valores e perguntas que o feminismo sempre se fez. Como garantir o cuidado? Como manter a interdependência ? Como tratar da reprodução social na vida comum? Como a casa é um espaço que tem que ser considerado para as soluções sobre economia? Como o cuidado das crianças importa para mover a economia?

Temos uma circulação de um vocabulário que não tínhamos antes, que antes era silenciado por essas forças autoritárias. Se nós vamos ser capazes de transformar essas fissuras de garantias de direitos aos mais vulneráveis e aos mais precarizados em uma nova forma de vida coletiva, isso está aberto a disputa.

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