por Ana Carolina Fonseca
Publicado originalmente no Correio Braziliense
Especialistas em análises forenses e em violência contra a mulher acreditam que Sidnei Araújo, 46 anos, que matou a ex-mulher, o filho e mais 10 pessoas durante o réveillon em Campinas (SP), cultivava uma ideologia “extremamente machista”. Embora confuso, o discurso apresentado pelo assassino nas cartas que ele deixou, permite afirmar que ele nutria um ódio generalizado contra as mulheres e se sentia uma espécie de vítima de leis e outras ações que buscam garantir o direitos a elas.
Para a doutora Carmen Rosa Caldas-Coulthard, especialista em linguística forense e estudos de gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), chama a atençao o fato de o autor do crime se referir à ex-mulher e a outras mulheres da família dela como “vadias”. “O uso é derrogativo (diminuidor), acachapante, considera a mulher inferior. Isso está claro”, afirma a especialista.
A especialista também aponta inconsistências no texto, principalmente em termos de tópicos, que variam com frequência. “É dirigido ao filho, aos amigos, aos policiais…”, ressalta. Essa instabilidade também fica clara, segundo a pesquisadora, nas referências ao filho: “Ele clama pelo direito de ser pai, mas, ao mesmo tempo, se inclui no grupo de loucos; foi denunciado como pedófilo, mas nega”, diz Caldas-Coulthard.
O psiquiatra forense Talvane de Moraes, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, afirma que um caso desses é muito grave, mas que é difícil tirar conclusões sem contato com o autor. No entanto, ele levanta a possibilidade de que o assassino estivesse caminhando para um estado psicótico. “Ele se sentia injustiçado, e esse é um dos sentimentos mais terríveis do ponto de vista emocional”, analisa.
A antropóloga e professora de direito da Universidade de Brasília (UnB) Débora Diniz afirma que a principal preocupação neste momento, além da solidariedade com a família, é entender a ideologia machista por trás da mensagem. Esse crime não seria só um “delírio solitário”, já que, na carta, o autor fala do tempo atual. “Fazer uma pergunta sobre quem ele é, se é psicopata, é um caminho simples demais para entender algo mais complexo”, argumenta.
Diniz alerta que a misoginia demonstrada na carta não se configura como liberdade de expressão, já que o “ódio intenso” revelado por Sidnei faz eco e tem uma audiência. “Ele não faz só uma confissão, ele está se comunicando com outros homens que compartilham do que ele acredita, que acham que o homem pode violentar a mulher”, ressalta. A carta, segundo a antropóloga, faz uma convocação para que outros homens ajam como ele.
Outro aspecto de destaque, tanto para Débora Diniz quanto para Carmen Caldas-Coulthard, é a indignação do autor da carta com a Lei Maria da Penha. No texto, ele usa o termo “vadia da penha”, o que seria mais um indicador da aversão que ele sentia pelas mulheres. Segundo a professora da UFSC, há, no texto, uma crença de que o sistema político funciona a favor das mulheres e contra os homens. A especialista, contudo, ressalta, que, na realidade, acontece o contrário: “Existe um sistema que tenta proteger as mulheres e não consegue”.
Sancionada em março de 2015, a Lei do Feminicídio (13.104/2015) classifica esse tipo crime como hediondo e prevê como agravantes situações específicas, como a presença de filhos na hora do assassinato. Segundo o Mapa da Violência 2015 — Homicídio de mulheres no Brasil, pesquisa realizada pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, em parceria com a ONU, feminicídio é definido como a agressão que resulta em morte, e envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo à condição de mulher.
De acordo com dados dessa pesquisa e da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa a quinta posição no ranking de homicídio de mulheres, entre 83 países. A taxa é de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres. O indicador brasileiro é 48 vezes maior do que o do Reino Unido. O documento destaca também o local das agressões: 27,1% delas acontecem em domicílios, atrás apenas das vias públicas (31,2%).