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Após dois anos, caso “vagabunda” de discurso de ódio em RO vai a julgamento

25 de junho, 2018

por Natacha Cortêz

Publicado originalmente na UOL

Sinara Gumieri, aquela vagabunda. Defensora de aborto, de gênero. E ‘ai’ dela que mande me processar, que eu provo que ela é. Aquela mulher, aquela bostinha, cocô. (…) Sapatona muito doida

As palavras acima, ditas em sala de aula pelo professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) Samuel Milet a respeito da mestre em Direito e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética Sinara Gumieri foram o estopim para uma ação civil que, segundo os advogados do caso, deve ser julgada nos próximos dias, quase dois anos depois dos insultos declarados.

Sinara pede indenização por danos morais contra Milet e ainda contra a UNIR, além de retratação das duas partes e o cumprimento de medidas pedagógicas por parte da universidade. “Ou melhor, que a UNIR promova conversas sobre a violência que ocorreu”, explica Sinara.

Samuel Milet não respondeu às tentativas de contato da reportagem até o fechamento deste texto.

Em outubro de 2016, a pesquisadora foi uma das palestrantes na Semana Acadêmica de Direito da instituição a convite dos próprios alunos, que organizaram o evento. “Minha proposta era debater Direito e gênero” diz ela. “Acabei falando de como as universidades ainda são ambientes hostis às mulheres, de aborto como política pública e da Lei Maria da Penha“. Sinara também conta que o auditório onde se apresentou estava lotado e que as pessoas ali estavam bem atentadas, engajadas na palestra. Na ocasião, ela não notou nenhuma reação hostil à sua fala.

Uma semana depois, o professor Samuel Milet abria uma de suas aulas de Direito de Sucessões expressando seu juízo de valor em relação a Sinara e sua palestra. Além do conteúdo que abre este texto, disse que a pesquisadora tinha “ideologia petista”. Tudo foi gravado em áudio pelos alunos por orientação do próprio professor, que discutia com uma das alunas para poder sustentar suas teorias. Os quase 15 minutos gravados podem ser ouvidos aqui.

O áudio extrapolou as dependências da faculdade, foi às redes sociais, e agora, chega pela primeira vez ao juizado federal especial do Distrito Federal, que terá a oportunidade de analisar se discursos de ódio têm, ou não, lugar em sala de aula. “Não tenho dúvida de que qualquer outra pessoa que tivesse ido falar sobre gênero podia ter sido submetida a mesma fúria dele”, afirma Sinara.

“A tese é simples: não há dúvidas de que houve ofensa de bases discriminatórias, por razão de gênero (vagabunda), de orientação sexual (sapatona doida) e de vinculação política (‘odeio petista’)”, continua.

À época do vazamento do áudio, Sinara, juntamente com a Anis, mobilizou uma campanha na internet pedindo um posicionamento da UNIR sobre o comportamento de Milet. Fizeram ainda uma petição online e conseguiram mais de oito mil assinaturas exigindo retratação da instituição e do professor.

Manifestos contrários ao professor foram emitidos pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Comissão da Mulher e Comissão da Diversidade Sexual da OAB de Rondônia, Federação Nacional de Estudantes de Direito, pelo Centro Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília, pelo Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Gêneros, Discursos e Comunicação na Amazônia Ocidental (Hibiscus-Unir-Vilhena) e pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). Todos estão compilados no tumblr “Isso não é Direito”.

Houve ainda um pedido formal do Ministério Público Federal, que acionou a universidade, solicitando que a postura de Milet em sala de aula fosse investigada. O órgão pediu que um processo administrativo disciplinar (PAD) fosse aplicado e foi claro em dizer que, como esse tipo de discurso não podia ser aceito, deveria haver uma resposta pedagógica aos alunos.

O PAD foi cumprido em partes. Milet foi suspenso imediatamente por 60 dias, mas o período caiu no fim do ano letivo. A universidade, alegando que não podia abrir mão de tê-lo na volta às aulas, converteu a suspensão em uma redução de seu salário. Milet trabalhou por 90 dias recebendo metade dele.

Não aconteceram pedidos de desculpas.

Quando tudo isso aconteceu, o professor estava em estágio probatório. Ou seja, ele tinha passado por um concurso, mas estava naquele período de três anos em que o funcionário público fica sendo avaliado. “Obviamente que um episódio como esse tinha que ser considerado na avaliação dele”, diz Sinara. Isso não ocorreu.

Em um vídeo no YouTube postado em 23 de outubro de 2016 com o título de “Direito de resposta”, Samuel diz: “Sou e serei sempre um defensor da vida, contra o aborto e a ideologia de gênero“. Por fim, ele justifica que a expressão “vagabunda” foi mal interpretada. “Nunca tive a intenção de atingir a honra de ninguém.”

Para o PAD, alunos que presenciaram a fala de Milet foram ouvidos como testemunhas. Repetir a história, ainda mais na frente do professor, foi um processo desgastante para alguns.

Breno Martins foi um deles. “Refleti bastante antes de aceitar depor. Minha mãe me questionou sobre possíveis represálias que eu poderia sofrer. Tive medo, mas fui. Estava eu, a menina que ‘enfrentou’ ele e mais três colegas. Cruzamos com o professor várias vezes enquanto esperávamos para depor, e eu, especificamente, tive que estar com ele lá dentro. Me senti coagido, ele tecia uns comentários e chegou a perguntar se eu era homossexual. Mas aí a comissão interveio e disse que aquela pergunta não era permitida”, lembra o estudante.

Laís Von Dollmger não assistiu à aula que acarretou o processo movido por Sinara, mas é aluna do curso de Direito da UNIR e atualmente frequenta as aulas do professor. Segundo ela, hoje Milet tem um discurso mais velado, mas ainda assim “emite posições retrógradas”. “Neste semestre, por exemplo, fez comentários sobre a morte da Marielle [Franco]. Disse que ‘quem procura acha’ ou coisa do tipo. Falou também que o episódio [da gravação] deu uma certa promoção positiva para ele no meio em que vive, pois muitas pessoas querem que ele se candidate à política depois do que aconteceu”, afirma.

Breno não vê mudanças no comportamento do professor. “Ele continua fazendo piada com mulheres e LBGTs. Coisas como: ‘Como ela quer vir assim pra aula e não quer que a gente olhe?’ e ‘Se uma travesti quisesse entrar num banheiro feminino, eu ia meter porrada mesmo’. Até brinco dizendo que ele tem que ter mais cuidado ou vai parar no Fantástico.”

Professora no núcleo de Ciências Humanas da UNIR, Walterlina Brasil acompanhou o episódio de 2016 de perto e inclusive manifestou sua opinião através de uma carta pública, assinada também por outros professores da universidade. O documento, que ainda hoje reflete a opinião dela, diz: “Não existe um ato pedagógico na ação do professor Milet. Na verdade, a ação contraria tudo o que diz a profissão da docência no Ensino Superior. Foi uma atitude desproporcional. Não é isso que devemos fazer em sala de aula, nem fora dela.”

Para Walterlina, o acontecido não gerou mudanças positivas no campus, pelo contrário, “formou um ambiente inglório e enfraqueceu os estudantes”. “No mais, ele [Samuel] se tornou o ‘professor do Fantástico’, o que me deixa mais surpresa”, continua. A professora se refere ao momento que Samuel foi entrevistado pelo programa dominical da Rede Globo. Segundo ela, Samuel usa essa aparição como uma boa propaganda de si. “Ele ficou muito feliz, porque ficou famoso com a repercussão do caso. Hoje, se identifica como o professor do Fantástico.”

Procurada pela reportagem, a universidade diz que todas as providências cabíveis foram tomadas. E que, por isso, “não há que se falar em retratação pública por parte da UNIR, tendo em vista que trata-se de episódio isolado que não representa em momento algum o posicionamento da instituição”.

Quanto às medidas pedagógicas pedidas pelo MPF e reiteradas pela ação de Sinara, a resposta é a seguinte: “a UNIR já vem desenvolvendo amplamente debates”.

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