por Ana Pompeu
Publicado originalmente no ConJur
A ação que pede a descriminalização do aborto em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação completou um ano de tramitação no Supremo Tribunal Federal no dia 8 de março, dia internacional da mulher. É a ação com maior número de pedidos de ingresso como amicus curiae da história da corte. A arguição de descumprimento de princípio fundamental atingiu o número de 36 entidades interessadas em apresentar posição sobre o tema.
O dado é da professora da FGV Direito SP Eloísa Almeida. Advogada e pesquisadora, ela estudou, para a tese de doutorado que concluiu na USP, a figura do amigo da corte. Para tal, ela levantou todos os processos desde 1999, quando a instituição foi criada, até 2015, quando defendeu a tese. O segundo tema que mais suscitou interesse da sociedade nesse sentido foi o da terceirização, que terminou em março de 2017, teve 31 pedidos — na ocasião, Cármen Lúcia propôs uma rediscussão a respeito do papel dos amici curiae no Supremo.
“Este [aborto] é um caso controverso, que levanta posições políticas fortes. Além disso, tem grupos muito organizados em torno do tema. Tanto as organizações de direitos das mulheres, quando seus opositores mais clássicos, que são as instituições religiosas”, afirma Eloísa Machado. No dia Dia da Mulher, mais quatro pedidos foram feitos ao tribunal, o que tornou a ADPF do aborto a recordista.
Para além do assunto desencadear paixões, a pesquisadora acredita que a postura recente do STF contribui para maior interesse em participação nos julgamentos. “O protagonismo do STF nos últimos anos ganhou proeminência”, disse. Em outros momentos, quando da apreciação dos casos dos anencéfalos, em 2012, e das pesquisas com células-tronco embrionárias, em 2008, não houve tamanho engajamento.
Das 36 entidades que desejam marcar presença no julgamento da descriminalização do aborto, 26 são favoráveis e 10 contrárias ao pedido feito na ação proposta pelo Psol e pela Anis – Instituto de Bioética. A ministra Rosa Weber é a relatora do caso. Ela ainda não definiu se admitirá todas as solicitações e ainda não há data para que o tema entre na pauta do Plenário.
O argumento para a ADPF é de que a proibição da prática viola preceitos da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante e da saúde. A Anis estima que, desde que a APDF foi apresentada, há um ano, mais de 500 mil mulheres se submeteram a procedimentos clandestinos de abortamento.
Apesar do volume de pedidos de participação, a advogada e pesquisadora, Eloísa Machado, não acredita que os argumentos levados aos ministros sejam todos considerados. “A figura do amicus curiae teria impacto se tivéssemos alguma regra processual que fizesse com que os pontos levantados fossem superados nos votos. Como não existe, fica esvaziada a possibilidade de impacto real”, analisa. Ela afirma que o comum é que os ministros ignorem as sustentações ou pincem algum fundamento conforme lhes for interessante.
Quando foi instituído, em 1999, o Supremo só admitia amicus curiae para ações diretas de inconstitucionalidade e ADPF. Atualmente qualquer ação é passível de pedidos. Quando admitida, a entidade tem direito de fazer uma sustentação oral durante o julgamento, além de entregar memoriais para os ministros que vão julgar o tema.
Hoje, no Brasil, o aborto é permitido somente nos casos de anencefalia do feto — na decisão do próprio Supremo, em 2012 —, de estupro e quando a gestação representa um risco para a vida da mulher, em definições do Código Penal de 1940, sem mais alterações desde então. A relatora, ministra Rosa Weber, já se manifestou a favor da autorização do aborto até o terceiro mês de gestação em um julgamento da 1ª Turma do STF no ano passado, bem como os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.
O aborto é tema ainda de uma ADI relatada pela presidente do STF, na qual a Associação Nacional de Defensores Públicos e a Anis pedem que o aborto seja considerado legal nos casos de microcefalia do feto, provocada pela infecção pelo vírus zika.
Direitos reprodutivos
As últimas cinco entidades que protocolaram pedidos foram a International Women’s Health Coalition (IWHC), a Assessoria Jurídica Universitária Popular da Universidade Federal de Minas Gerais (AJUP-UFMG), o Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP-UFMG), junto à Divisão de Assistência Judiciária da UFMG (DAJ-UFMG), a Criola e à Clínica de Direitos Humanos da UFMG (CdH-UFMG), e o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.
O Margarida Alves afirma que “a criminalização do aborto tem um impacto discriminatório sobre as mulheres pobres que, sem outra alternativa, recorrem a procedimentos inseguros e são as únicas efetivamente criminalizadas pelo Estado”, apontam. O coletivo admite ser este um tema difícil em várias partes do mundo. Outros países, no entanto, o enfrentaram e reconheceram o direito das mulheres em interromperem voluntariamente a gravidez.
No caso da IWHC, o material, protocolado em português e inglês, a entidade se diz gabaritada para apresentar dados e evidências científicas capazes de contribuir com o debate. As informações apontam para duas conclusões: primeiro, a de que a criminalização não diminui o número de abortos realizados e, segundo, a de que a criminalização leva a um aumento da mortalidade e da morbidade materna, impactando negativamente a saúde pública.
A Criola se apresenta como associação civil anti-racista, feminista e anti-homofóbica. A entidade pretende levantar a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez dentro dos chamados direitos reprodutivos e, para além, com uma abordagem de raça. “A agenda de direitos humanos para mulheres negras é intrinsecamente dependente da quebra com parâmetros restritivos, proibitivos e punitivistas sobre seus direitos reprodutivos.”
No entendimento da Ajup-UFMG, a perspectiva da autodeterminação feminina foi “historicamente negada e conduzida por interesses alheios e majoritariamente machistas”. Há ainda uma incoerência em defender prioritariamente os direitos das mulheres na Constituição e, ao mesmo tempo, manter ilegal a prática do aborto. Por sua vez, o Centro Acadêmico Afonso Pena, também da UFMG, defende que “o aborto é um fato da vida reprodutiva das mulheres e uma necessidade de saúde que precisa ser considerada pelo Poder Público”.