Apesar da brutal decisão que se anuncia, não há razão para concluir que cortes são os locais errados para tratar de temas tão importantes quanto o direito à saúde reprodutiva
Por: Gabriela Rondon/ Carta Capital
Os Estados Unidos estão prestes a integrar a lista dos raros países que retrocedem em matéria de direitos reprodutivos. Quase 50 anos depois de ter inaugurado a era dos tribunais que assumem demandas sobre aborto como demandas de direitos fundamentais, o país caminha para dizer o exato oposto.
Isso foi o que mostrou o rascunho de voto majoritário vazado da Corte Suprema na semana passada, que indica a iminente reversão dos casos Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992). No novo cenário, estaria permitido que qualquer estado decidisse criminalizar integralmente a interrupção da gestação – mesmo em casos extremos como gravidez resultante de estupro ou que cause risco à vida de quem gesta. O voto vazado não se preocupa em estabelecer nenhuma exceção.
Se confirmada, como é provável, não é novidade qual será o efeito imediato da decisão em marcha ré. Mulheres ou outras pessoas que podem gestar negras, latinas, residentes dos estados do sul e centro-oeste, migrantes, com deficiência, adolescentes, trabalhadoras precarizadas, aquelas que já são mães ou quaisquer outras que não possam viajar para buscar o procedimento em regiões de leis mais protetivas irão sofrer de maneira desproporcional. Mas não só.
Pelo impacto transnacional dessa corte, os reflexos no debate político internacional e em outros tribunais, especialmente no sul global, podem ser desastrosos. Por isso, é preciso que se atente: o voto liderado pelo juiz Samuel Alito oferece má interpretação constitucional.
A principal aposta dessa maioria é decidir que a corte não pode decidir. Para Alito e os outros quatro juízes que parecem acompanhá-lo, nem a Constituição nem a história constitucional estadunidense têm nada a dizer sobre aborto. Se interpretação for jogo de caça-palavras, há um ponto: é fato que não há a palavra aborto no texto de 1787. Como também não há nenhuma vez a palavra mulher.
É uma opção disponível interpretar literalmente que tanto aborto não está regulado como mulheres não são sujeitos de proteção de direitos fundamentais. É o que sugerem? O voto faz uma seleção particular de textos do século 19 supostamente para demonstrar que a hostilidade ao aborto permeou a história estadunidense. Desse revelador passado, concluem que a corte não poderia ter decidido proteger decisões reprodutivas das mulheres – aquelas que não são mencionadas, e também não participaram da escritura dessa Constituição.
Alito e seus colegas de voto sabem que o mesmo fundamento utilizado para decidir Roe v. Wade, a proteção à privacidade, derivada da leitura da 14ª emenda, é central para outras decisões importantes da corte, como sobre casamento interracial, contracepção e direito dos pais de decidirem sobre a educação de seus filhos. Não parecem dispostos a jogar fora nenhum desses, então sinalizam abandonar a leitura expansiva da Constituição apenas para aborto, e ressalvam sua excepcionalidade: diferente dos outros casos, aqui estaria em jogo “vida fetal”. Esta que também não está mencionada na Constituição, diga-se de passagem.
“A suposta leitura originalista é apenas o verniz a esconder a interpretação ideológica dessa maioria.”
Apesar da brutal decisão que se anuncia, não há razão para concluir que cortes são os locais errados para tratar de temas tão importantes quanto o direito à saúde reprodutiva. Colômbia e México deram exemplos recentes e consistentes sobre como interpretar de maneira orgânica a Constituição de seus países e marcos internacionais de direitos humanos, com atenção simultânea ao reconhecimento da dignidade das mulheres e às evidências em saúde sobre o que significa criminalizar o aborto. Não consideraram necessário que nenhuma de suas Constituições mencionasse “aborto” para isso.
Os tribunais latino-americanos assumiram a missão que se espera de cortes constitucionais: que avaliem com rigor se uma lei se justifica para seus fins e se, no caminho, não viola de maneira desproporcional os direitos das pessoas envolvidas. A criminalização do aborto não passa em nenhum desses testes.
Mesmo o Brasil tem jurisprudência firme e clara que aponta na mesma direção de reconhecer quando uma gravidez compulsória pode representar tortura, ou como importa compreender a proteção gradual do direito à vida e o conceito de vida digna atravessado pela proteção à saúde física e mental das pessoas que gestam.
O Supremo Tribunal Federal tem nas mãos, desde 2017, a oportunidade de unir todas as peças de suas próprias decisões anteriores para emitir uma decisão sobre a justiça da criminalização do aborto. Quando esse momento chegar, que se assuma a coragem contra-colonial do que a América Latina pode ensinar. O bom debate constitucional está por aqui.