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A morte do futuro: covid-19 entre os povos originários

24 de junho, 2020

O coronavírus é grave para todos os corpos sem imunidade, porém mais grave ainda para quem vive à margem das proteções do Estado, como as populações negras e indígenas

Por Debora Diniz e Giselle Carino

Publicado originalmente no site do jornal El País

Alvanei Xirinana foi o primeiro indígena a morrer da pandemia de covid-19 no Brasil. Era do povo Yanomami, vivia aldeado. Índio de cidade ou índio aldeado são compostos que descrevem formas de vida para os povos originários. O território importa tanto quanto a etnia para a disputa de quem são os indígenas na contagem dos mortos pela pandemia. O menino de 15 anos vivia como se imagina um índio aldeado: longe da cidade, com língua e crenças próprias, habitando casas comunais.

O presidente Bolsonaro jamais se pronunciou sobre a morte de indígenas durante a pandemia. A única palavra de seu governo sobre Alvanei Xirinana veio de ministra Damares Alves, a responsável pela política indigenista brasileira —sugeriu existirem evidências de “contaminação criminosa”, isto é, o menino teria morrido por guerra biológica e não por ineficiência das políticas de saúde. Não há nenhuma razoabilidade no delírio paranoico de ministra Damares. É um ardil para encobrir o abandono da saúde da população indígena: lideranças, como Raoni Metuktire, líder do povo Kayapó, dizem que “Bolsonaro se aproveita da pandemia para exterminar os indígenas”. Se há crime, é o cometido pelo próprio presidente contra os povos originários. Aldeias não conseguem fazer o isolamento social, pois são terras invadidas por garimpeiros, madeireiros, grileiros. Além do grande capital global.

Mas de que morreu Alvanei Xirinana? Covid-19 foi a doença provocada pelo vírus que antecipou as feridas abertas do corpo sobrevivente às persistentes desigualdades. Antes do novo vírus, o menino sobreviveu a malárias e à desnutrição, doenças angustiantes de gente que vive em extrema pobreza na América Latina. Alvanei Xirinana morreu porque é índio no Brasil. Covid-19 foi apenas o que antecipou a hora de sua morte. O menino era já um sobrevivente da perversa desigualdade contra os povos originários e da floresta.

A epidemia de sarampo dos anos 1950 mostrou a brutalidade de uma nova doença entre as populações originárias na fronteira entre Brasil e Venezuela: 1/3 da população Yanomami foi dizimada pelo vírus trazido por viajantes. Alvanei Xirinana era, talvez, a quarta geração dos que sobreviveram à epidemia de sarampo. São os velhos que contam a história das epidemias e as lembranças percorrem gerações. Carlos Fausto é antropólogo, coordena projetos de memória etnográfica, como os vídeos nas aldeias, e diz que “desde o início da colonização, os povos originários tiveram que aprender em seus corpos o que é uma epidemia”. E reproduz diálogo recente com seu pamü (primo), Kanari Kuijuro, de Canarana, cidade da Terra Indígena do Xingu: “Pamü, não pode arriscar, vocês só podem voltar se fizerem quarentena. É uma doença grave; Eu sei, pamü, é como sarampo do tempo de meu avô Agatsipá”.

Covid-19 é uma doença grave para todos os corpos sem imunidade, porém mais grave ainda para quem vive à margem das proteções do Estado, como as populações negras e indígenas. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) conta que 2.390 indígenas adoeceram de covid-19 e desses 236 morreram. Já foram 93 povos atingidos em um total de 305 no país. O Governo federal contesta os números. Se para o povo comum, Bolsonaro proíbe até mesmo a publicação de dados oficiais, para os povos indígenas cria sua própria classificação sobre quem é indígena —seriam 85 mortes, pois somente seria índio quem vive em aldeia. Índio de cidade seria outro tipo de gente, diz a xenofobia dos autoritários.

Sonia Guajajara é a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Descreve Bolsonaro “como o inimigo declarado” dos povos indígenas. Com cocar na cabeça, ela supera a falsa dicotomia entre índia de cidade ou índia aldeada: foi candidata à vice-presidência da República nas eleições que levaram Bolsonaro ao poder. “Nossa existência é nossa resistência”, diz Sonia Guajajara, para quem a pandemia de covid-19 representa o “risco de um novo genocídio” acompanhado de um ecocídio contra a Amazônia. Ela não faz quarentena, apesar da gravidade do vírus, pois a morte de Alvanei Xirinana é o prenúncio de tragédia já vivida por seus antepassados.

 

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