João Soares
Publicado originalmente na Deutsche Welle
Falar sobre aborto no Brasil é arriscado. Para políticos em campanha, o posicionamento sobre o tema pode custar a eleição. Para uma antropóloga e uma jovem ativista que luta pela legalização da prática, significou ter que deixar o país. Acuadas por ameaças de morte e perseguição, elas viram-se forçadas a tomar essa decisão para proteger suas vidas.
Foi em agosto do ano passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou dois dias de audiências públicas sobre o tema, que se intensificaram as perseguições contra a antropóloga Debora Diniz. Na ocasião, mais de 60 pessoas expuseram pesquisas, experiências pessoais, opiniões e dados. O objetivo era qualificar o debate sobre uma ação apresentada pelo PSOL que pede a descriminalização do aborto feito até a décima segunda semana de gravidez.
Professora da faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Diniz foi apontada como um dos cem pensadores globais de destaque pela revista Foreign Policy em 2016. Ela participou ativamente das discussões no tribunal, uma vez que a ação conta com assessoria técnica do Instituto de Bioética Anis, do qual é diretora e fundadora.
Com a exposição, começaram as ameaças contra ela e seu círculo de relacionamentos, incluindo a reitora da UnB e sua família. Em uma das mensagens recebidas, um massacre era cogitado caso ela continuasse dando aulas.
Fora do país desde o ano passado, ela relata que as intimidações não cessaram. “Saí do país para ter condições de seguir com meu trabalho e me manter ativa, o que tenho feito, com muita veemência e ainda mais presença, inclusive em redes sociais neste momento. As ameaças pretendem me calar, mas só me fizeram falar mais, e chegar mais longe”, afirma Diniz, alertando para a fragilização da democracia brasileira. “Pretendem calar quem vai contra as pautas do poder estabelecido hoje no país.”
“PEC da vida”
Em breve, deverá ser votada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado a PEC 29/2015, que busca levar a criminalização do aborto para o texto constitucional. De autoria do pastor e ex-senador Magno Malta, a proposta é chamada pela bancada evangélicas de “PEC da vida”. O objetivo é fechar de vez o espaço para debater o tema no Congresso e demarcar os limites para a atuação do STF na discussão.
Ao longo dos últimos anos, Diniz fez apelos para que as decisões sobre o aborto levassem em consideração estudos científicos já realizados. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), coordenada por ela em 2016, mostrou que o procedimento é realizado por uma em cada cinco mulheres de até 40 anos no Brasil.
O levantamento também revelou que 48% das mulheres que abortaram tinham o ensino fundamental completo, e 26%, ensino superior. Do total, 67% já tinham filhos, 56% eram católicas, e 25%, protestantes ou evangélicas. Os resultados chamam atenção pelo alto número de mulheres religiosas, camada da população em que se concentra a rejeição ao debate em torno da legalização dessa prática.
Apesar da fundamentação metodológica do estudo conduzido pela professora da UnB, a senadora Juíza Selma, relatora da PEC 29/2015 no Senado, critica os resultados.
“Não concordo com essa pesquisa, porque o que se vê no discurso das feministas não é essa defesa das mulheres pobres, trabalhadoras, que já tiveram mais de um filho, e sim, mulheres muitas vezes envolvidas com drogas, prostituição, e que não querem ter os filhos como um encargo a cumprir”, opina.
“Antes de tudo, precisamos conscientizar essas pessoas. Se você não quer ter filho, tome contraceptivo, adote os seus métodos para não engravidar. Não é depois que engravidou que vai descartar aquela criatura numa lata de lixo”, defende a senadora, que é clara quanto aos objetivos da PEC.
“Vem exatamente para evitar esse ativismo judicial que está acontecendo no Brasil. Não cabe ao Judiciário fazer essa escolha, mas ao povo. Nós, como representantes do povo, é que temos que legislar, cabendo ao Judiciário apenas aplicar a lei ao caso concreto”, afirma.
A PEC 29/2015 havia sido arquivada no final da última legislatura, processo revertido pelo senador Eduardo Girão (PODE-CE) em fevereiro deste ano. Ao pedir o desarquivamento da chamada “PEC da vida”, o Congresso a classificou como “o sonho dos pró-vida brasileiros, que inclui na Constituição o direito à vida desde a concepção”.
Pauta evangélica
O endurecimento da legislação que criminaliza o aborto é uma reivindicação importante de lideranças evangélicas. Em dezembro do ano passado, antes de assumir o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves afirmou que iria priorizar a tramitação no Congresso do Estatuto do Nascituro, que prevê a garantia dos direitos do feto e a concessão de uma bolsa para mulheres vítimas de estupro, a fim de evitar que façam aborto.
Na contramão das lideranças, a jovem Camila Mantovani, de 24 anos, participou da criação da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, há mais de dois anos. Sua postura dissonante custou caro. O debate no STF também a deixou em evidência, e não tardou para que as intimidações saíssem da esfera virtual para se tornarem perseguição física nas ruas. Quando as ameaças passaram a atingir sua família, optou por deixar o Brasil, há menos de um mês.
“Enquanto cristã e evangélica, eu sempre vou me posicionar em defesa da vida e da dignidade humana. É o exemplo que tenho quando olho para Jesus, que se posicionou radicalmente a favor desses princípios, muitas vezes em detrimento da própria lei. Eu me sinto obrigada a trabalhar pela redução de danos”, argumenta.
“O Brasil é um dos países onde mais se faz aborto no mundo. Esse número não se reduz com o passar dos anos, pelo contrário, assim como o de mulheres que morrem em decorrência de aborto inseguro. Há também um quadro de mulheres criminalizadas, respondendo a processos ou presas por conta de aborto”, comenta a ativista, que classifica a proposta em tramitação no Senado de “PEC da Morte”.
Anencéfalos e aborto legal
A criminalização do aborto no Código Penal de 1940 incluía, originalmente, duas exceções: mulheres vítimas de estupro e situações em que a gravidez represente risco de vida para as gestantes. Em 2012, o plenário do STF determinou a inclusão de casos de bebês anencéfalos na lista, pelo fato de já nascerem mortos, em sua maioria, o que provocava um forte trauma para as mães.
No debate sobre a PEC que pode modificar o texto constitucional sobre o tema, deseja-se contestar essa resolução, ao introduzir na legislação o conceito “inviolabilidade de proteção à vida desde a concepção”.
A PEC precisa do apoio de 49 dos 81 senadores na votação em dois turnos no plenário. Ao constitucionalizar o atual regime legal, cria-se um obstáculo importante para mudanças na jurisdição sobre o tema, inclusive pelo STF, aponta Eduardo Mendonça, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
“Isso traz um desacordo moral para um documento que deveria, por definição, ser o repositório dos consensos fundamentais da sociedade. Colocar na Constituição um tema que vem sendo alvo de debate no Brasil e no mundo é a cristalização da controvérsia”, critica o jurista.
Existe também uma preocupação com os efeitos de uma eventual aprovação da PEC no serviço de aborto legal, destinado às gestantes que se enquadram em uma das exceções previstas em lei. A pesquisa Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional, também realizada por Diniz, avaliou 68 serviços de saúde classificados como referência pelo Ministério da Saúde. Desses, 45,6% não realizavam de fato o procedimento.
Enquanto 28 suspenderam o atendimento, quatro nunca o realizaram. O estudo também observou que 14% dos serviços exigem Boletim de Ocorrência e outros 8% pedem o laudo do Instituto Médico Legal que comprove o estupro, o que é proibido por lei.
“Narrativas geram aproximação moral e mobilização; dados, em geral, não. Os atores populistas sabem disso, e por isso produzem e difundem narrativas independentemente de serem baseadas em evidências, mas certeiras em provocar os valores morais das suas audiências”, lamenta Diniz.
“A criminalização não evita abortos e mata mulheres, mas é mais rápido e eficaz repetir um bordão, como ‘salvemos as duas vidas’. A lei não faz isso, mas a narrativa é eficaz”, conclui.