Ana Hickmann e a ‘loucura dos machos’, de Debora Diniz.
Publicado originalmente por HuffPost, em 25 de maio de 2016.
Ana Hickmann é uma mulher linda. Bem distante do lar, é cheia de sucesso – uma celebridade, para usar as formas atuais de descrever gente famosa.
Viveu uma história de horror, daquelas que animam roteiros de disparates solitários nos países civilizados: Rodrigo de Pádua seria um fã que, obcecado pela magia de Ana, a perseguia pelo mundo virtual. Criou comunidades de adoradores, acompanhava a apresentadora em detalhes – do guarda-roupa às aparições públicas, desfazia-se em declarações e poemas. Desorganizado mentalmente, mas encorajado pela abundância de poder que acompanha os homens armados, deixou de lado o mundo virtual e foi ao encontro do objeto amoroso não correspondido. O restante do enredo conhecemos pelas notícias: mulheres reféns, luta corporal entre homens, a cunhada de Ana hospitalizada, Rodrigo morto com três tiros.
Gritamos com um misto de raiva e certeza: “Rodrigo era um louco”. Talvez fosse mesmo um homem em intenso sofrimento mental, daqueles a precisar de muito medicamento e divã para exercitar o autocontrole e refrear a fantasia.
A tese da loucura parece nos explicar o sem-sentido da cena – um homem apaixonar-se por uma mulher impossível e exigir-lhe retribuição afetiva com o uso de ameaça e violência. Li que Rodrigo seria um sujeito inoportuno há tempos, por isso teria sido bloqueado das redes sociais de Ana. Algo como uma aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha em tempos de relacionamentos virtuais: estava proibido de se aproximar até mesmo por mensagens, pois já nessas situações mostrava um homem abusador.
Quero seguir a hipótese comum de que Rodrigo seria um louco e, em surto, teria se dirigido à destruição de sua fantasia erótica e amorosa. Sua família vive um luto solitário – o da perda do filho ou do irmão, mas também a de que o louco foi abatido justamente. Não há reconhecimento neste pedido de lamento, pois Ana é uma vítima inocente da loucura, uma mulher pública que se aterroriza pela violência masculina e anônima.
Li transcrições do diálogo desesperado entre Ana, já refém, e Rodrigo, armado, em um quarto de hotel – ela implora por uma conversa, comporta-se como alguém capaz de arrumar aquela dor insana. Um trecho me foi particularmente intrigante: “Moço, se tem alguma coisa que eu fiz, me diga como eu conserto isso”, diz Ana, Rodrigo responde: “Eu sou um ser humano, cretina. Eu tenho coração. Eu te falei um milhão de vezes”. “Eu jamais partiria seu coração”, desespera-se Ana, de costas para o sujeito armado.
Precisei reler o diálogo e rememorar que eram frases trocadas entre uma mulher e um algoz desconhecido. O homem que gritava “cretina” e reclamava amor era um desconhecido para Ana. O louco empunhava uma arma para declarar seu amor, a mulher assumia-se como alguém capaz de arrumar aquela desorganização mental e afetiva.
Esse trecho exige calma – mas não para justificar o amor inconsequente de Rodrigo, tal como sustentado pela família enlutada; menos ainda para decifrar os sinais de qual seria o mais apropriado diagnóstico psiquiátrico do matador. Esse é um diálogo sobre como os amores masculinos se comportam quando enfurecidos: não importa que Ana desconhecesse o homem sofredor, menos ainda que jamais tenha sequer se aproximado dele. Rodrigo exigia dela o script amoroso autorizado aos homens em relações amorosas violentas.
Se ele era mesmo um louco, sua fantasia se expressou no marco patriarcal do gênero da sociedade brasileira, pelo qual homens desiludidos no afeto entendem-se autorizados a violentar mulheres.
Nem todo homem apaixonado e matador de mulher é um louco, mas todos, quando confrontados com o crime, expressam-se com essa retórica do sofrimento amoroso. A loucura apenas deixou a fantasia mais escandalosa, pois Rodrigo tomou para si uma mulher que não lhe pertencia pelos pactos sociais do encontro amoroso. Por isso, os sentidos de sua loucura não devem ser investigados apenas nos números das classificações médicas para as doenças mentais, mas principalmente na forma como socializamos os homens para os afetos e amores. Qualquer que seja o nome da loucura de Rodrigo, ela deverá ser descrita no formato de um sintagma – ele sofria da “loucura dos machos”.