por Ana Clara Klink, Bárbara Teixeira, Juliana Chan e Maraísa Cezarino
Publicado originalmente no Jota
Há três categorias de argumentos nas manifestações dos 39 amici curiae que ajudarão o Supremo Tribunal Federal a decidir legalizar o aborto até o terceiro mês de gestação e declarar inconstitucional sua criminalização. Dentre os 28 amici que se posicionam favoravelmente à descriminalização, há argumentos jurídicos, políticos e técnicos, todos ligados à saúde. A maior parte das petições articulam essas três categorias de forma concomitante, buscando demonstrar a ilegitimidade da criminalização do aborto e a gravidade de suas consequências. E são essas estruturas argumentativas que serão descritas a seguir.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 foi proposta em maio de 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em parceria com a Anis (Instituto de Bioética). A Corte já havia tangenciado a descriminalização do aborto ao decidir pela possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos em 2012, na ADPF 54, e no Habeas Corpus 124.306, em que a 1ª Turma do STF – ou seja, apenas parte dos ministros – sustentou a inconstitucionalidade da criminalização do aborto.
A argumentação trazida nesta nova ação, além de indicar os diversos direitos fundamentais sendo violados, faz uma reconstrução da jurisprudência nacional favorável à questão e explora o panorama internacional, concluindo pela desproporcionalidade da medida criminalizatória. Além disso, mostra que os impactos de sua criminalização incidem de maneira mais grave sobre mulheres negras, pobres, periféricas, indígenas e jovens.
Diante da complexidade do tema e da sensibilidade que carrega – tanto para movimentos feministas quanto para os contrários ao aborto -, a relatora da ação, ministra Rosa Weber, convocou uma audiência pública, abrindo a possibilidade de expressão da sociedade civil organizada. É nesse sentido que se constrói a relevância do instituto do amicus curiae, ligado à ideia de “amigo (ou amiga) da corte”. O instrumento possibilita a manifestação escrita em ações jurídicas e promove a abertura da Corte à sociedade civil, oxigenando o debate constitucional e possibilitando aos ministros o acesso a uma maior pluralidade de argumentos.
Aos argumentos.
As teses argumentativas de cunho jurídico trazem a noção de que a criminalização do aborto incorre em graves violações de direitos fundamentais, em esfera tanto nacional quanto internacional. Dentre eles, pode-se citar o direito à dignidade da pessoa humana das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, direito à saúde, à integridade física e psicológica, proibição à tortura, ao planejamento familiar, à liberdade, à vida e à segurança, bem como os princípios da igualdade de gênero, autonomia, cidadania. Os direitos sexuais e reprodutivos, mais especificamente, são associados a direitos civis e políticos, na medida em que garantem liberdade, e a direitos econômicos, sociais e culturais, pois asseguram o exercício da autonomia sexual e reprodutiva . Nesse sentido, podem ser considerados elementos constitutivos da cidadania, ressignificando-a sob uma perspectiva de gênero, raça e classe.
Assim, mesmo que se considere o direito à vida como polo oposto da equação, o sopesamento dessas garantias leva à conclusão de que a criminalização é medida demasiadamente gravosa para atingir o fim buscado. Políticas públicas de atenção integral à saúde das mulheres e de amparo social e informacional, por exemplo, seriam medidas mais eficazes para evitar o aborto. Como respaldo à argumentação, experiências internacionais de legislações mais permissivas que a brasileira apresentam o impacto positivo que a descriminalização do aborto pode gerar à sociedade. Além do cenário europeu – com países como Portugal, Alemanha e Holanda -, são trazidos países da América Latina – como Uruguai, México e Chile -, mais próximos da realidade brasileira.
Por fim, o debate jurídico constantemente reafirma a legitimidade do STF para julgar a questão. Se de um lado se defende que a competência para tanto seria do poder Legislativo, os amici favoráveis à ação reafirmam o papel do STF como poder contramajoritário, cuja função é proteger direitos fundamentais a despeito da vontade da maioria. Nesse sentido, apontam que a jurisprudência brasileira caminha gradativamente para a maior priorização da proteção à integridade física e psicológica das mulheres, bem como para o reconhecimento do caráter não absoluto do direito à vida – distanciando-se, assim, de antigas noções discriminatórias que permeavam o código penal quando promulgado.
Dentre os argumentos políticos, apresenta-se a visão de que tanto a gravidez quanto a sua interrupção, ao longo da história, foram utilizadas como mecanismos de controle da população, a fim de atender interesses políticos e econômicos masculinos. Sob essa perspectiva, a criminalização do aborto evidencia não apenas a instrumentalização e reificação da mulher, mas o estabelecimento e manutenção das relações de poder e discriminação do homem sobre a mulher, e do branco(a) sobre a negra.
É sob esse enquadramento que se propõe enfrentar a criminalização do aborto. Se em relação à mulher branca ela ocorria com fins de “velar pela honra da família” e garantir o crescimento populacional, em relação à mulher negra estava atrelada à dominação e propriedade de seu corpo, por meio do estupro colonial e à (re)produção de mão de obra escrava, que se dava mediante a gestação forçada e obrigatória.
Nesse contexto, a descriminalização do aborto coloca-se como questão de autonomia e liberdade das mulheres. Segundo as amigas , o “levar a cabo uma gestação ou não” deve hoje ser encarado enquanto um direito exclusivo seu, sobre o qual nem Estado, pai ou sociedade podem interferir. Pensando num contexto mais amplo de construção democrática, ainda, a autonomia da mulher decorre do direito de escolher os rumos de sua própria vida e definir de seus direitos. A subrepresentatividade política das mulheres e a sua desconsideração enquanto cidadãs plenas evidencia a ilegitimidade da criminalização do aborto , sendo essencial à democracia o respeito à laicidade estatal e a superação de argumentos morais que mantém estruturas de poder desigual baseadas em gênero.
Para além disso, a opção do Estado de criminalizar, ao invés de proporcionar uma interrupção da gravidez segura e acessível e disponibilizar políticas e serviços públicos apropriados, reproduz desigualdades e estigmas sociais. Além das desigualdades entre homens e mulheres, mulheres pobres e negras são as mais vulneráveis à estigmatização no sistema de saúde público e à incidência do sistema de justiça criminal .
No que toca a argumentação construída sobre a saúde pública, a legalização do aborto é buscada para conferir maior segurança às mulheres que buscam o procedimento. Quando seguidas as recomendações clínicas adequadas, o aborto é considerado tecnicamente simples e apresenta baixíssimos riscos à vida das gestantes. Entretanto, na medida em que o contexto de ilegalidade estimula a estigmatização de mulheres que optam pela interrupção da gravidez e faz com que haja um alto custo para a realização de abortos seguros, muitas mulheres recorrem a clínicas clandestinas e procedimentos caseiros de alto risco. Em consequência, o aborto figura como a 4ª maior causa de mortes maternas no Brasil , sendo sua criminalização ameaça direta ao direito à saúde das mulheres. Além disso, as despesas com o tratamento de pacientes que procuram a rede pública após abortos clandestinos mal sucedidos acabam por onerar desnecessariamente o Estado.
Destaca-se ainda que a omissão estatal penaliza duplamente as mulheres que recorrem ao aborto. A primeira vez em decorrência de um atendimento precário, discriminatório e carente em políticas públicas, e, posteriormente, ao processá-las penalmente , colocando-as diante de instituições que as revitimizam e violam direitos básicos, de modo muitas vezes equiparável à tortura. Assim, os embates morais que envolvem a questão do aborto não justificam a omissão do Estado e de profissionais da área médica em garantir o direito à saúde das mulheres .
A complexidade da discussão sobre a descriminalização do aborto leva à construção de argumentos que perpassam não apenas discussões jurídicas, mas abarcam esferas ligadas à saúde, à administração pública e a pautas políticas de diferentes grupos sociais. Assim, a possibilidade de participação na ação permite que a sociedade apresente argumentos plurais e representativos de segmentos que, tradicionalmente, não teriam acesso à Corte. A força deliberativa de instrumentos como os amici e as audiências públicas devem, nesse sentido, ser explorada ao máximo, justamente para que uma decisão com lastros na razão pública seja obtida.
Como integrantes do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da USP – e também amigas da corte -, procuramos neste artigo expressar as diferentes vozes que, articuladas, buscam acessar o Supremo e evidenciar a importância do debate aberto sobre a descriminalização do aborto na garantia de direitos fundamentais em estado de constante e reiterada violação.