Zika. Igreja dividida sobre hipótese de mulheres fazerem aborto, de João Almeida.
Publicado originalmente por Diário de Notícias, em 15 de fevereiro de 2016.
Líderes religiosos divergem em relação ao aborto por microcefalia. Bispos católicos são contra. Associação cristã ecuménica hesita. E a sociedade civil move-se
Enquanto o Brasil, do governo ao cidadão mais anónimo, se une no combate à epidemia de vírus zika que desde o ano passado varre sobretudo a região nordeste, os líderes religiosos dividem-se. Em causa, a justificação ou não da interrupção voluntária da gravidez, criminalizado por lei no país, a propósito do surto de bebés nascidos com microcefalia – perto de 4000 casos estão sob investigação – devido à contaminação das gestantes com o vírus zika.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), composta por autoridades católicas, já se pronunciou contra. Mas membros do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC), que reúne cinco fés cristãs, incluindo a CNBB, admitem que o tema deve ser discutido não apenas no âmbito religioso mas também com a participação da sociedade civil.
Como pano de fundo, a recomendação de Zeid Ra”ad Al Hussein, principal comissário dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), para que os países mais afetados pelo vírus zika permitam o aborto. “Estamos a pedir aos países para mudarem essas leis, porque como podem eles pedir às mulheres para não engravidar sem lhes oferecer a informação disponível e também a possibilidade de interromperem a gravidez?”, perguntou Cécile Pouilly, porta-voz do comissário, em resposta a uma pergunta relativa ao caso de El Salvador, onde o aborto é, como no Brasil, criminalizado.
Sim, não talvez
A reação da CNBB à recomendação da ONU foi enérgica: “O aborto não é resposta”, disse o presidente da conferência, o bispo dom Sérgio da Rocha, na última quarta-feira. “Nós precisamos valorizar a vida em qualquer situação e em qualquer condição que ela esteja, menor qualidade de vida não significa menor direito a viver ou menos dignidade humana”.
“O aborto favorece a eugenia, uma prática para selecionar pessoas perfeitas”, acrescentara dias antes dom Leonardo Steiner, bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral do mesmo organismo.
O presidente da CNBB falava à margem do lançamento da Campanha da Fraternidade Ecuménica de 2016, cujo tema é “Casa Comum, Nossa Responsabilidade” e que trata do saneamento básico no Brasil, cujas falhas primárias são consideradas decisivas para a proliferação de doenças, como o zika. A seguir ao encontro, os líderes das diversas religiões reunidos na CONIC encontraram-se com a presidente Dilma Rousseff.
Foi após esse encontro no Palácio do Planalto que Joel Zeferino, pastor da Igreja Batista Nazareth e presidente da Aliança de Batistas do Brasil, se manifestou discordante do bispo católico, sublinhando que a ala cristã que representa ainda não tem uma posição definida sobre o tema. “Não podemos ignorar o assunto, devemos ouvir a voz da mulher”, defendeu.
“Dada a epidemia do vírus zika e a sua implicação na microcefalia, a questão do aborto vai aparecer, sim, como uma questão em discussão, a posição da minha comunidade é que essa questão deve ser discutida de forma democrática e aberta e incluindo as mulheres que são as pessoas que sofrem esses abortos, principalmente as mulheres negras e as das periferias das grandes cidades, que vêm recorrendo a abortos ilegais”.
Outra das fés representada na CONIC, a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, orienta as mulheres presbiterianas a não fazer o aborto por causa “da ética cristã”, disse o presidente Werton Brasil de Souza, mas admite “escutar posições individuais”, contrapôs. “Do ponto de vista da ética cristã nós somos contra, porém mantemos a posição de respeitar as opiniões individuais”.
Com o “não” peremptório da Igreja Católica, uma clara abertura ao “sim” dos batistas e um “talvez” dos presbiterianos, o presidente da CONIC, dom Flávio Irala, preferiu adiar uma posição definitiva. “O assunto nem sequer foi ainda discutido formalmente”, afirmou.
Debate antigo
O vírus zika e a macrocefalia trazem para o centro do debate o sempre escaldante tema do aborto no maior país católico do mundo. Ainda para mais quando, estima a Organização Mundial de Saúde, se realizam cerca de um milhão de abortos clandestinos por ano no Brasil.
Importante para a discussão o facto de, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) ter determinado, por oito votos a dois, que não é crime o aborto de fetos anencéfalos, ou seja, com malformação do cérebro e do córtex. Em 91 por cento dos casos, os bebés atingidos morrem uma semana após o parto.
Porém, no caso dos portadores de microcefalia a percentagem de sobrevivência é muito superior. E, além disso, a deficiência só pode ser detetada com segurança após 24 semanas, quando nem nos países com legislação mais liberal sobre a interrupção voluntária da gravidez, o aborto é autorizado.
Grupos contrários ao aborto organizam-se, por isso, em petições como a “Não instrumentalize o Zika Vírus para promover o aborto” que em três dias recolheu 30 mil assinaturas. Para Lenise Garcia, doutora em microbiologia pela Universidade de Brasília ouvida pela revista Época, “o bebé tem o direito de viver como tantas crianças com deficiência, a principal vítima não é a grávida, é o bebé”.
Ouvida pela mesma publicação, a antropóloga Débora Diniz defende que ao não permitir o direito de interromper a gravidez sem correr o risco de sofrer até três anos de prisão, o Estado lança as grávidas “numa situação de extremo desamparo”.
Débora Diniz é também membro do instituto de bioética Anis, que já prepara uma ação para que o STF equipare as contaminadas com o vírus zika às grávidas portadoras de bebés anencéfalos.
O debate surge numa altura de posições sociais cada vez mais extremadas no Brasil: por um lado, o Congresso Nacional é considerado o mais conservador da história democrática do país, com uma bancada suprapartidária de quase 100 deputados chamada de Bancada da Bíblia, por ser contrária a questões como o casamento gay ou o aborto, e que inclui o presidente da Câmara dos Deputados, o poderoso Eduardo Cunha; por outro, nas ruas e nas redes sociais a sociedade multiplica-se em atos contra o machismo, movimento classificado de “Primavera das Mulheres” e classificado pela imprensa como a principal novidade política de 2015.