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Publicado originalmente por Ovelha, em 7 de junho de 2016.
Nem epidemias se espalham de forma igualitária no Brasil. O vírus da zika tem um rosto que o representa até mais do que o inseto listrado de pernas longas. Esse rosto é o das mulheres de áreas mais pobres que sofrem diante das incertezas da possível microcefalia de seus bebês. “O zika tem distribuição de gênero, classe e raça”, diz a antropóloga Debora Diniz em entrevista à Ovelha.
Professora da Universidade de Brasília, Debora também é pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, com a qual tem feito pesquisas e ações para garantir os direitos fundamentais de mulheres atingidas pela epidemia. Em 2012, ela fez parte do grupo que, junto com a Anis, encaminhou a ação ao STF que legalizou o aborto em caso de anencefalia. Agora o grupo se une de novo para encaminhar outra proposta ao STF que Debora explica ser diferente: “Não é só pelo aborto, é pelos direitos fundamentais das mulheres em uma situação de epidemia”. Para dar início a ação e abrir a mente da população para o debate, o grupo lançou o documentário Zika com histórias sobre a epidemia sob a perspectiva das mulheres.
O filme é uma tentativa de apresentar as reais vítimas do vírus da zika a um público que ainda pensa mais em mosquito do que nas mulheres afetadas. No Informe Epidemiológico de Microcefalia publicado dia 18 de maio pelo Ministério da Saúde, foram confirmados 1.384 casos de microcefalia no país, sendo 1.233 na região Nordeste. Quem mais sofre nesse cenário são as mulheres, desamparadas pelo Estado que lhe pede para não engravidarem e as incriminam por abortarem; pela Igreja que condena métodos contraceptivos e o aborto; e muitas vezes, por seus companheiros que, sem coragem e sem a obrigação de gestar, parir e amamentar seus filhos, simplesmente as abandonam.
Ovelha: Em que consiste essa nova ação que está sendo encaminhada ao STF e qual a diferença entre ela e a de 2012?
Debora Diniz:
Essa ação não é por interrupção da gestação por microcefalia do feto. Essa é uma ação de defesa dos direitos, em fase de epidemia, das mulheres e especialmente das mulheres pobres. Grande parte das crianças nascidas com a síndrome neurológica do zika está concentrada em quatro estados do país, todos na região Nordeste. Estamos falando, sim, de uma grave epidemia, com consequências para mulheres mais vulneráveis, mulheres nordestinas de zonas rurais, pobres com pouquíssimo acesso a políticas de postos de saúde, de transporte e de proteção social.
A ação tem cinco pedidos e está sendo composta em parceria com a Associação Nacional dos Defensores Públicos, a ANADEP. O primeiro é o amplo e irrestrito acesso à informação. Mulheres em idade reprodutiva têm que ser informadas que uma epidemia está em curso e que ela tem implicações e riscos para a saúde reprodutiva. Segundo, todas as mulheres em idade reprodutiva têm que ter acesso ao mais amplo e diverso pacote de métodos de planejamento familiar, como o repelente, que é a única forma de prevenção para aquelas mulheres que querem ter filhos, e aos métodos contraceptivos de longa duração e reversíveis.
O terceiro pedido é que as mulheres infectadas pelo zika, por alguma forma de avaliação diagnóstica, e que estejam em intenso sofrimento por todos os medos envolvidos da epidemia e das incertezas, possam ter acesso à interrupção legal da gestação se assim desejarem. Não estamos falando do direito à interrupção da gestação por um diagnóstico de qualquer singularidade neurológica no feto. Nós estamos falando de mulheres que, em regiões epidêmicas, infectadas pelo zika e grávidas, se encontram em intenso sofrimento mental e não desejam manter a gestação. O quarto pedido é que todas as mulheres que tiveram seus filhos diagnosticados com a síndrome tenham acesso aos serviços de saúde até o limite de uma estação de 50km do seu domicílio. O último é que todas as mulheres que tiveram os seus filhos com a síndrome congênita do zika tenham acesso ao benefício de transferência de renda da assistência social, sem recorte de renda. Esse auxílio já existe para famílias miseráveis e o que nós estamos postulando é que toda a família afetada tenha acesso a esse benefício.
Ovelha: Então não seria tanto uma ação simplesmente pela legalização do aborto em caso de diagnóstico, mas em garantir direitos de saúde mental e bem-estar das mulheres.
Debora:
Isso. E é muito importante ter essa clareza. É uma ação muito menos pela legalização do aborto. Essa é uma ação de planejamento familiar e de proteção à maternidade e à infância. Falar em planejamento familiar é falar de informação sobre métodos, aborto e como cuidar dos filhos.
Ovelha: Você fala bastante sobre o acesso à informação e, nessa situação de epidemia, o acesso a informação é extremamente importante. Porém, o pouco que se sabe sobre o vírus não está sendo passado devidamente às pessoas que mais estão sendo afetadas por ele. Como se pode melhorar o acesso à informação e o diálogo com as mulheres afetadas pelo zika?
Debora:
A primeira coisa é passarmos a falar novamente que temos uma epidemia. Hoje parece que ela sumiu de cena. Vive se falando da crise política e nem sequer falamos mais sobre o zika. Nós estamos diante da descoberta de uma síndrome e continuamos falando de microcefalia, aí começamos a nos confundir em todo o debate. Temos que falar em síndrome neurológica do zika. A microcefalia só é um dos sinais.
O 2º é começarmos a qualificar sobre o que estamos falando. Obviamente, eliminar o mosquito é uma ação importante, mas precisamos falar sobre como cuidar das principais vítimas da epidemia, que são as mulheres em idade reprodutiva. Essa distribuição de gênero traz uma série de demandas que não enfrentamos seriamente que é falar desses tabus num país que proíbe falar sobre gêneros nas escolas e em que não temos educação sexual nas escolas. Temos que falar sobre métodos de planejamento familiar, aborto e sobre como as mulheres vão cuidar das crianças com dependência. Ainda estamos falando mais de mosquito do que de mulheres e nós precisamos falar mais sobre mulheres. Temos que colocar mulheres e meninas no centro da epidemia.
Ovelha: Hoje a região mais afetada no Brasil é o Nordeste. Como essa discriminação regional e de classes se traduz na incidência do vírus da zika não só no Brasil, mas também em outros países da América Latina?
Debora:
Em toda a região, quando o vírus chega, ele tem que encontrar um vetor que já está entre nós há anos que, no caso, é o mosquito. A concentração do mosquito tem características históricas e sociais da desigualdade do país que é o saneamento, a urbanização, a superpopulação e a água parada. Nós podemos falar que uma epidemia pode infectar a qualquer uma de nós, digamos eu, você e a Amanda, que é uma das personagens do documentário Zika, mas isso não é verdade porque não estamos na mesma geografia de risco.
Uma vez infectadas, os riscos pra minha vida, pra sua e pra de Amanda são diferentes porque o acesso à informação, o acesso aos métodos de planejamento familiar e inclusive a um aborto seguro, mesmo que ilegal, são diferentes pelo marcador de classe. Isso já acontece em El Salvador, o segundo país com maior prevalência da doença, e em Honduras, só que com agravantes ainda maiores. El Salvador é um país em que mais de uma centena de mulheres estão presas porque tiveram um aborto espontâneo. Essa epidemia se cruza com um processo persistente de desigualdade e de opressão contra as mulheres que são anteriores ao adoecimento, como a criminalização do aborto. Então, nós precisamos falar que a epidemia espelha a desigualdade social, racial, regional e de renda desses países.
Ovelha: Você acredita que esses fatores social e racial da incidência do vírus da zika têm a ver com a pouca atenção que o assunto tem recebido na mídia?
Debora:
Eu não tenho a menor dúvida disso. O rosto que nos comove é o rosto que nós reconhecemos como sendo um dos nossos. O rosto da epidemia é um rosto que na história do Brasil não teve seu sofrimento reconhecido. As nossas sensibilidades não são espontâneas em nós, elas são treinadas pela desigualdade. Não é qualquer dor que nos comove, ela tem que ser uma dor próxima. Por isso que é tão importante ter começado a ação judicial com o filme, que é uma ferramenta pra contar a história que nós não queremos ver, nem ouvir.
Ovelha: Do lado de quem é contra a legalização do aborto no caso do zika, há pessoas que usam o argumento da “eugenia”. Como você avalia esse argumento?
Debora:
A discussão sobre o aborto é uma discussão que nos confunde, ela nos provoca os afetos. Vivemos hoje em um país em que o ácido fólico faz parte da nossa alimentação para prevenir de distúrbios de fechamento do tubo neural. Distúrbios de fechamento do tubo neural é uma palavra difícil pra falar malformação no feto. É uma medida preventiva que faz parte todos os dias da nossa alimentação. Nós dizemos às mulheres que comam ácido fólico e que não fumem na gravidez, tudo isso pra evitar adoecimento nela e no feto. Mas nós não chamamos isso de eugenia, certo? Nós chamamos isso de medidas preventivas.
Eugenia é uma palavra que carrega consigo uma história cruel e longa, que não tem nada a ver com a luta por igualdade dessas mulheres do Nordeste das quais estamos falando. Eugenia foi uma política de Estado de extermínio! Nós estamos falando aqui de direitos individuais, em uma situação de epidemia e de um Estado negligente com as mulheres pobres. Não estamos falando de aborto por nenhuma malformação, mas aborto por infecção pelo Zika. Estamos falando de mulheres que foram infectadas pelo Zika e que estão em sofrimento pelo estado de incerteza da epidemia. Em segundo lugar, eu não preciso falar só do direito das mulheres ao aborto ou só do direito das mulheres de cuidarem de seus filhos com deficiências em uma sociedade inclusiva. Nós não precisamos ter políticas egoísticas na luta pela igualdade. Nós temos que tornar mais complexas as nossas lutas.
Ovelha: Em outros países afetados pela epidemia do zika, como El Salvador, Colômbia e Equador, aconselharam as mulheres a não ficarem grávidas. O governo de El Salvador pediu oficialmente para que as mulheres evitem engravidar até 2018. De que forma esse tipo de política e mentalidade prejudica a discussão sobre a liberdade reprodutiva das mulheres na América Latina?
Debora:
Ela chega com um cenário restritivo de acesso à informação e a métodos de planejamento familiar, e nós temos ainda um cenário de uso de leis criminais para regular a reprodução em toda a região. Ainda há a dificuldade de agendamentos desses assuntos, uma vez que temos uma dificuldade de discutir direitos reprodutivos em toda região latino-americana. Isso pode ter duas razões: nós somos uma região muito patriarcal, com uma centralidade numa ideia de família, nas crianças e na maternagem; segundo, por uma forte penetração das igrejas cristãs, como católica e evangélica. O Estado brasileiro é cada vez mais essa sobreposição entre religião e política que é muito tendenciosa para as mulheres. Novamente, as principais vítimas são as mulheres.
Ovelha: Referente a sua carreira acadêmica e científica, você já enfrentou alguma dificuldade por ser mulher e por defender os direitos das mulheres?
Debora:
Na verdade eu fui demitida da Universidade Católica de Brasília no início da minha carreira. Acho que maior dificuldade do que perder o emprego não pode ter. Acho que não pode ter maior ato de discriminação do que deixar alguém sem renda e sem emprego. Mas isso é a experiência de se fazer vida intelectual engajada. Você tem que romper com ideias de neutralidade. Eu nunca vou ser neutra, mas isso não quer dizer que eu não seja confiável no que eu faço.
Ovelha: Você lançou recentemente o livro “Cadeia: Relatos sobre mulheres”, com histórias de mulheres presas. Como foi para você, uma mulher branca, professora acadêmica, encarar essas diferenças sociais tão de perto?
Debora:
A escrita do livro é a escrita desse desencontro, dessa perturbação por ser uma mulher branca, em liberdade, olhando, ouvindo, escrevendo sobre mulheres entre grades. Foi uma experiência transformadora. O livro foi de um descentramento da minha própria existência, de todos meus privilégios, a começar pelo da liberdade.
Ovelha: Como você tentou passar esse sentimento para a escrita?
Debora:
Principalmente por uma sensibilidade sobre como lidar com as vozes, formas, locais de expressão, e por nunca ter feito nenhuma pergunta a mulher presa. Eu nunca interpelei, eu só ouvi as histórias, então, eu não provoquei o que eu queria ouvir. Eu ouvi como era vivido.