Marcelle Souza
Publicado originalmente no Universa
O vereador Fernando Holiday (DEM) apresentou um projeto de lei que cria barreiras à realização do aborto nos casos já previstos em lei na cidade de São Paulo. O PL 0352/2019, protocolado no último dia 28 de maio na Câmara de Vereadores, prevê ainda a internação psiquiátrica de mulheres que possam realizar o procedimento de forma ilegal.
A proposta foi recebida com duras críticas por profissionais da saúde e do direito. “Na prática, o projeto implica em um retrocesso ao aborto legal, pode ser questionado e atacado por diversas vias, porque cria obstáculos indevidos de acesso à saúde, que não estão previstos em nível federal”, afirma Gabriela Rondon, advogada da Anis – Instituto de
Bioética.
Um dos obstáculos, segundo a advogada, é a exigência de alvará judicial para a interrupção de gestação nos casos já previstos em lei (estupro, risco de vida para a mulher ou anencefalia fetal).
A norma técnica de atenção às vítimas de violência sexual do Ministério da Saúde deixa claro que nessas situações não é necessária apresentação de boletim de ocorrência nem decisão judicial para realizar um aborto. Esses documentos também não são exigidos pelo Código Penal.
“Na nossa opinião, não basta a palavra da mulher, é preciso autorização do juiz para a realização de um aborto. A ideia é questionar os critérios para que o município possa ou não o realizar”, diz o vereador, que afirma ter protocolado o projeto após ter sido procurado por organizações antiaborto.
Na prática, segundo os especialistas ouvidos por Universa, solicitar o alvará inviabilizaria o aborto legal, já que a Justiça pode demorar meses para julgar o caso. Mesmo que isso aconteça a tempo, o projeto define que o município deve recorrer, a fim de suspender ou cassar a decisão favorável à interrupção de gestação.
“Certamente as mais afetadas por essa lei seriam as crianças e adolescentes violadas por alguém próximo ou da família, porque são as que têm mais dificuldade de fazer uma denúncia, e passariam a ser rejeitadas pelo serviço de saúde”, diz Gabriela Rondon.
‘Dissuadi-la do abortamento
O projeto de Holiday também afirma que a mulher que conseguir um alvará deve aguardar prazo mínimo de 15 dias antes de realizar o aborto. Nesse período, ela será submetida, de acordo com o texto, “a atendimento psicológico com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento”.
Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, especialista no atendimento a vítimas de violência sexual, o texto fere o código de ética da profissão. “O psicólogo não pode dissuadir ninguém a tomar uma posição. O nosso papel é acolher a mulher, independente da nossa opinião”, diz.
A mesma crítica faz o médico Thomaz Gollop, coordenador do GEA (Grupo de Estudos sobre o Aborto) e membro da Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista por Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia). “O projeto do vereador Holiday foge aos mais rudimentares conceitos de
dignidade e respeito ao ser humano. Não cabe ao profissional da área da saúde, seja médico, psicólogo, assistente social ou defensor público, dizer à mulher o que ela deve fazer”, afirma.
O vereador argumenta que o objetivo do texto não é ferir os códigos de ética e diz que alguns pontos do projeto podem ser alterados ao longo do debate nas comissões. “Realmente a intenção não é dissuadi-la, isso pode ser readequado durante a tramitação. A ideia é que a mulher tenha consciência de que existe outra vida, independente da dela, no seu útero”, afirma Holiday.
Ver e ouvir o feto
O texto ainda diz que a gestante disposta a realizar um aborto dentro da lei deve ser submetida obrigatoriamente a um exame de imagem e som “que demonstre a existência de órgãos vitais, funções vitais e batimentos cardíacos”.
“Ao obrigar a mulher a ver e ouvir esse feto ou embrião, você está praticando uma violência institucional. É muito cruel lembrá-la, mais uma vez, de que essa gravidez é fruto de um estupro”, afirma a psicóloga Daniela Pedroso.
Caso a gestante for menor de idade, os pais ou responsáveis também deverão ver as imagens, segundo o projeto de lei.
“Não tenho dúvidas de que a proposição está dentro das definições de tortura. Isso é inaceitável”, diz o médico Jefferson Drezett, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), que esteve mais de 20 anos à frente do serviço de aborto legal do Hospital Peróla Byington, em São Paulo.
O vereador justifica a medida dizendo que ela vem sendo utilizada “com sucesso em outros países”. “A gente retirou esse dispositivo de uma legislação do Alabama (EUA) e tem reduzido o número de abortos”, diz ele, sem apresentar os dados.
Em 2017, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou um projeto que obrigava as vítimas de estupro a verem imagens do feto antes de interromperem uma gestação. O texto, no entanto, foi vetado pelo governador Rodrigo Rollemberg. “Isso seria uma barbárie, algo macabro para qualquer mulher que já foi vítima de um crime”, disse o governador à época.
Internação psiquiátrica
O texto do vereador Fernando Holiday ainda propõe, no artigo 6º, a internação psiquiátrica de mulheres que queiram interromper uma gestação nos casos não previstos em lei. Segundo o projeto, se em qualquer caso de atendimento médico for detectada “uma gravidez em que as condições sociais e psicológicas da gestante indiquem propensão ao abortamento ilegal, o município requererá medidas judiciais cabíveis para impedir tal ato,
inclusive a internação psiquiátrica”.
O vereador diz que a ideia é criar um mecanismo que permita ao poder público intervir nos casos em que a gestante seja dependente química ou tenha uma doença mental. “A nossa preocupação é com as mulheres que têm o seu julgamento prejudicado por conta do uso de drogas e que no meio da gravidez sintam-se atordoadas e acabem tomando a decisão de abortar”, diz Holiday.
O trecho, no entanto, não deixa isso claro e é visto com grande preocupação pelos especialistas ouvidos pelo UOL. “O texto é tão amplo que permite que a internação seja utilizada em qualquer situação em que o profissional achar que mulher possa fazer um aborto”, diz a advogada Gabriela Rondon. “Mesmo que fosse só para mulheres dependentes, isso vai contra o consenso médico. A internação compulsória não é a saída em grande parte das situações e não pode ser usada para condenar uma mulher por antecipação”, afirma.
Outros pontos
O projeto de Holiday determina que a mulher que desejar realizar um aborto nos casos previstos em lei obrigatoriamente passará por atendimento religioso, sempre que ela e seus pais expressarem qualquer forma de teísmo.
“Se a mulher quer ir à igreja antes de tomar essa decisão, é um direito dela, temos que respeitar. Mas é um absurdo que o Estado a obrigue a isso”, diz o médico Jefferson Drezett. Se aprovado, o município ainda teria que disponibilizar um telefone gratuito de atendimento para dar assistência psicológica às gestantes que pensam em realizar o abortamento. O objetivo seria indicar “locais de auxílio psicossocial e religioso, a fim de coibir a prática do
abortamento”, informar sobre a “desnecessidade do abortamento por conta da possibilidade de adoção” e a “existência de vida a partir da concepção”.
Nas escolas, os alunos deveriam ainda ser expostos à exibição “de áudio e vídeo que demonstrem a existência de batimentos cardíacos e outros sinais vitais no feto e no embrião” e “orientação religiosa sobre a bioética do abortamento”.
Projeto pode ser questionado na Justiça
Se virar lei, especialistas dizem que o texto poderia ser questionado na Justiça. Isso porque fere o código de ética das carreiras da saúde e extrapola a competência do município. “Além de violar o Código Penal e descumprir as normas técnicas do Ministério da Saúde, ele vai contra tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Uma lei municipal não pode ignorar todo esse arcabouço legislativo anterior”, diz a advogada Isabela Guimarães Del Monde, cofundadora da Rede Feminista de Juristas.
“Já existe um entendimento consolidado de que não é preciso apresentar boletim de ocorrência nem alvará judicial para o exercício desse direito. E quando um PL prevê que as mulheres de um município tenham acesso mais restrito do que no resto do Brasil a um atendimento de saúde, isso é inconstitucional”, afirma Del Monde.
Holiday acredita que o texto possa ser questionado na Justiça e não crê que ele seja votado em breve. “Como é um projeto muito polêmico, espero avançar com ele nas comissões ao longo do ano”, diz. O texto ainda aguarda distribuição para uma das comissões da Câmara.
Essa não é a primeira vez que Holiday se envolve no debate sobre aborto. Em 2017, ele e mais nove vereadores protocolaram um projeto para adicionar ao calendário de comemorações oficiais do município de São Paulo o Dia do Nascituro. O texto, no entanto, acabou arquivado quando chegou à Comissão de Educação.
“Esse é um dos temas que eu tenho defendido desde a campanha e, nos últimos tempos, tenho me aproximado de entidades que buscam não só a luta política contra o aborto, mas também fazem o acolhimento dessas mulheres”, diz.