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Publicado originalmente no El País
Um candidato à presidência da República que ignore a questão do aborto não pode ser levado à sério. Não é preciso ser feminista para reconhecer a gravidade dos efeitos da clandestinidade do aborto no Brasil — basta aprender dois números: meio milhão de mulheres abortam a cada ano e o aborto é a terceira causa de morte de mulheres jovens e saudáveis. Pela urgência do tema, há argumentos inaceitáveis ao debate público. Não vale apelo à religião ou ao foro íntimo do candidato, pois aborto não é questão de contra ou a favor, ou de respeito a essa ou àquela religião. Vivemos, até que se mudem as regras do jogo, em um país laico, isto é, nossos governantes devem separar crenças de fé da responsabilidade política. E só se respeita a laicidade do Estado protegendo as escolhas individuais sobre como regular a própria vida. Por isso, queremos saber como cada candidato entende a questão do aborto — se como questão de saúde pública, de direitos fundamentais ou de política criminal.
Infelizmente, em período eleitoral, aborto parece ser tema para constrangimento, para intimidação ou mesmo para discurso odioso. Candidatos sérios preferem se silenciar como escudo para a intimidação religiosa. Candidatos populistas abusam do jogo passional e se lançam como defensores da família, da moral e das religiões — afirmam, com orgulho, “serem contra o aborto”. Mas desde quando políticos devem ser contra ou a favor de políticas públicas de saúde? Esperamos argumentos razoáveis e fundamentados na ciência para responder à pergunta de por que mandar as mulheres para a prisão quando abortam. Essa é uma conversa urgente para o país com a ADPF 442 em curso no Supremo Tribunal Federal que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
A corte convocou audiências públicas para instruir o processo na última sexta e nesta segunda, 6 de agosto. A expectativa é que os 40 especialistas convidados, entre cientistas, pesquisadores, juristas, comunidades de fé e movimentos sociais, apresentem suas razões para orientar a decisão da corte sobre a descriminalização do aborto. A dois meses das eleições, as audiências têm também o papel de qualificar o debate público sobre como falaremos de aborto. É essa a lição: precisamos pautar aborto nas eleições, mas é preciso fazê-lo sem os cacoetes da intimidação moral ou do constrangimento religioso. Se é um tema de prisão, precisamos conhecer os argumentos dos que esperam duplicar o sistema prisional brasileiro a cada ano só com mulheres nas cadeias. Se é um tema de saúde pública, precisamos entender como a descriminalização do aborto reduziu a prática em outros países.
O que não podemos aceitar é que existam “temas proibidos” ao debate eleitoral. Aborto, redução da maioridade penal, descriminalização da maconha ou casamento entre pessoas do mesmo sexo são algumas dessas questões — se postas em um debate político, a intenção é a de intimidar o oponente que não recorra a populismos de “minha fé” ou “minhas crenças íntimas”. Há um cálculo de risco feito pelos candidatos sérios que faz com que se silenciem sobre esses temas e o resultado é uma perversa manobra populista de manipulação das emoções. A sobreposição entre o silêncio de alguns e o proselitismo de muitos faz com que o aborto seja objeto de discurso de ódio nas redes sociais. Enquanto isso, uma mulher por minuto aborta no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, do Ministério da Saúde.
Estamos na região do mundo que mais aborta e mais se pune as mulheres. As taxas de aborto clandestino na América Latina e Caribe são mais altas que na África. As mulheres abortam com medicamentos cuja procedência desconhecem, arriscam-se com talos de mamona, como foi Ingriane Barbosa, quem morreu há poucas semanas após intensa agonia. Confissão de fé pelos políticos não devolverá a vida de Ingriane, nem prevenirá que outras meninas e mulheres busquem métodos inseguros para o aborto. Reconhecer que o aborto é um fato da vida reprodutiva das mulheres não significa ser contra ou a favor do aborto, ou contra ou a favor das religiões. É ser um candidato honesto e transparente à realidade das mulheres, em particular as mais empobrecidas, como as jovens, nordestinas e negras. É ser um candidato que respeita o processo político e não se intima com a inquisição odiosa.