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10 de março, 2017

Conheça a história de oito mulheres pioneiras que estão transformando a maneira de pensar da sociedade

por Bárbara Stefanelli, Dolores Orosco e Thais Carvalho Diniz

Publicado originalmente no UOL

O que podem ter em comum uma garota que é fera no videogame e uma artista plástica quase centenária? As duas são mulheres, que, à sua maneira, quebraram tabus. A carioca Nicolle Merhy, 19 anos, é uma das poucas jogadoras profissionais em um cenário dominado por homens. Christine Yufon, chinesa radicada no Brasil, se mantém como ícone de moda aos 94. Um feito e tanto em um meio que só enxerga beleza na juventude.

Além de Nicolle e Christine, o UOL reuniu neste especial a advogada Marcia Rocha, a chef Alice Celidônio, a youtuber Nátaly Neri, a modelo Mayara Russi, a antropóloga Debora Diniz e a promotora Gabriela Manssur. Descubra por que todas elas são tão inspiradoras.

Musa dos games comanda equipe com 65 jogadores

A carioca Nicolle Merhy, 19 anos, é uma aplicada estudante do curso de Direito. Mas, para os fanáticos por videogame, ela é uma celebridade. Conhecida pelo nickname “Cherrygumms” (chiclete de cereja, em português), a jovem é a única jogadora profissional do game de tiro “Rainbow Six Siege” na América Latina e capitã da equipe “Black Dragons”, que compete mundo afora com 65 jogadores –todos homens.

Quando tomou gosto pelo console, aos 7, Nicolle não podia jogar sem a supervisão do pai. Gamer habitual, ele sabia os riscos que a filha corria nas salas online: cantadas grosseiras, ofensas machistas e até ameaças de estupro são comuns ali. “Já me chamaram de puta, vadia e inventaram que tinham nudes meus. Isso nunca me intimidou”, garante Nicolle. “Incentivo as jogadoras a não terem medo e nem se esconderem atrás de nicknames masculinos para evitar ataques misóginos.”

Nas salas de jogos, mulher não tem voz. Quando dou uma dica de estratégia, ela só é ouvida se um homem a repete

A ciberatleta não faz a linha nerd desajeitada. Sempre com os olhos marcados por um delineador e a bolsa Chanel a tiracolo, é dona de um carisma arrebatador. Seu canal no YouTube, o “Cherrygumms”, tem mais de 150 mil fãs que acompanham suas disputas e dicas de estratégias. Em maio, Nicolle espera estar com sua equipe na Polônia, para a final do Pro League de “Rainbow Six Siege”. “Esse campeonato é como se fosse a Libertadores do game”, compara, numa alusão a outro esporte que também já lhe disseram que não é coisa de menina.

“Ana Paula Arósio GG” venceu a depressão, o câncer e virou modelo

Ela é garota-propaganda de uma linha de maquiagem, disputada por grifes de lingerie e moda praia. Se a imagem de uma top model magérrima lhe veio à mente, errou. Estamos falando de Mayara Russi, 28 anos, uma modelo que pesa 110 quilos e é estrela do setor plus size. Conhecida como “Ana Paula Arósio GG” –os olhos azuis puxadinhos lembram os da atriz– já perdeu a conta de quantas campanhas fez no Brasil em 13 anos de profissão. “Sou uma vencedora. Agora quero uma carreira internacional.”

Toda essa autoestima, no entanto, sempre é posta à prova. Especialmente nos bastidores de desfiles que misturam modelos tradicionais e plus size. “Os maquiadores gastam horas no rosto das meninas magras e quando chega minha vez, fazem qualquer coisa. Houve um estilista que gritou comigo porque meu pé gordinho não passava pelas tiras de uma sandália”, recorda. “Quando isso acontece, me sinto de novo a adolescente que sofria bullying e fazia loucuras para emagrecer.”

Já ouvi histórias de meninas que pensaram em se matar por serem gordas

O sucesso no mundo fashion não foi determinante para que Mayara fizesse as pazes com o espelho. Ter sobrevivido a um câncer na tireoide, há oito anos, e ter dado a volta por cima após um relacionamento abusivo que a levou a depressão foram essenciais para que “se aceitasse como uma mulher maravilhosa”. “Meu ex me chamava de ‘gorda ridícula’ e se envergonhava de me apresentar aos amigos”, recorda. “Foram seis anos terríveis.”

A modelo acredita que a gordofobia não é um comportamento exclusivo dos homens. “Nas redes sociais, o que mais me choca são os ataques femininos. São mensagens do tipo: ‘Você não tem noção, sua gorda?’ ou ‘Olha essa gorda, se achando linda…’.” Gorda e linda, sim. Aos haters, a resposta de Mayara vem em forma de hashtag: #aceitaquedóimenos

Advogada cria oportunidades para mulheres transexuais

Márcia é bem-sucedida na carreira, está feliz com a nova namorada, mora em um bairro nobre de São Paulo, tem uma filha linda e, ela mesma, é dona de um corpão atlético e bronzeado. Mas o mundinho dessa advogada de 52 anos não é cor-de-rosa. Já passou por situações de intolerância, daquelas que só as mulheres como ela sabem o quanto dói. Márcia Rocha é transexual.

Durante 40 anos, a advogada foi o “doutor Marcos”. Enfrentou um longo processo de aceitação até tornar público o que sabia desde pequena: apesar de ter nascido em um corpo masculino, ela era uma mulher. No entanto, mesmo após assumir socialmente sua identidade feminina, continuava a ser chamada de Marcos em documentos e processos.

Meu ativismo me coloca em risco. Sei que ajudar outras trans incomoda muita gente

“Na foto do meu registro na OAB aparecia eu, como mulher, mas, no lugar do nome, vinha escrito ‘Marcos’. Isso me gerava algumas saias justas”, conta. Em janeiro deste ano, o pesadelo chegou ao fim: Márcia é a primeira advogada transexual a ter o nome social reconhecido pela Ordem.

Hoje, a causa que mais a interessa é que transexuais tenham oportunidades de trabalho para uma vida digna. Para isso, criou o site “Transempregos“, um banco de currículos de travestis e transexuais. Segundo Márcia, o portal já empregou centenas delas. “A grande dificuldade é dar emprego para trans com curso superior como eu. Muitas são competentes, mas não conseguem trabalhos nem de balconista”, lamenta. “Minha luta é para que isso mude um dia.”

It-girl fala sobre moda, beleza e racismo no YouTube

Nátaly Neri tem 22 anos e faz sucesso com a profissão da moda entre os jovens de sua idade: é youtuber. Em seu canal, que tem hoje mais de 170 mil assinantes, os destaques não são tutoriais de maquiagem, dicas fitness ou piadinhas com potencial viral. No programa “Afros e Afins”, a estudante de Ciências Sociais paulistana até pode abordar esses assuntos, desde que interessem às mulheres negras, como ela.

“Alguns reclamam que ignoro as meninas brancas. Outros me chamam de burra e dizem que não tenho conhecimento para falar de temas como racismo e feminismo”, conta. “Já passei por crises profundas, mas o meu objetivo é maior do que qualquer coisa.”

Às vezes, fico com medo, pois ‘apanho’ de racista todos os dias nas redes sociais

Nátaly encara como missão de vida ajudar a “formar o caráter de jovens, que ficam mais no YouTube do que em frente à televisão”. “Não gosto do rótulo de blogueira de beleza, pois quando falo do assunto é de uma forma engajada”, pontua a youtuber, mesmo preenchendo todos quesitos da categoria: está alinhada com a mais insider das it-girls, com seus looks descolados, maquiagem impecável e cabelos em penteados da moda.

Um dos vídeos postados recentemente no “Afros e Afins” tocou no debate racial mais acalorado da vez: apropriação cultural. Mulheres brancas podem usar turbante? “Não vou dizer que não dói para mim ver que jovens brancas de turbante, tranças e dreads são hipervalorizadas e saem nas capas de revistas, enquanto eu, quando saio na rua assim sou chamada de preta suja”, compara Nátaly no vídeo, que já teve mais de 300 mil visualizações. “Isso é doloroso, porque escancara o racismo que a mulher negra vive.”

Promotora de Justiça é o terror dos maridos violentos

Uma mulher é agredida no Brasil a cada quatro minutos. A cada 12, uma é estuprada. Os dados estarrecedores divulgados no início deste mês pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres não são novidade para a paulistana Gabriela Manssur, 42 anos. Como promotora do Ministério Público de São Paulo há 14, ela lida com cerca de 60 casos de violência doméstica diariamente.

Dona de uma personalidade forte, Gabriela ganhou notoriedade pela forma incisiva com que atua nos tribunais. Na vara em que atua, no bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo, é uma recordista: esteve à frente da acusação de 720 réus condenados por violência doméstica no último ano.

Num julgamento recente, a defesa de um homem que havia batido na cabeça da esposa com um pedaço de madeira queria reduzir a agressão de tentativa de homicídio para lesão corporal. Com o objeto do crime em mãos, ela golpeou repetidamente a mesa dos jurados para provar que a vítima poderia ter morrido com o ataque. Ganhou o caso.

As vítimas de violência doméstica que passam pela minha vida deixam o recado: ‘seja forte e nos ajude’

Sempre que pode, a promotora organiza corridas de rua para ajudar instituições que lutam pelos direitos da mulher. “O esporte ajuda a elevar a autoconfiança. Uma mulher segura não tolera ser desrespeitada”, diz ela, que pratica corrida, dança e está sempre elegante em vestidos e sapatos grifados.

A promotora é mãe de uma menina e dois meninos. Realista, sabe que a filha ainda pode sentir o machismo na pele em sua vida. “No entanto, me preocupo mais com o tipo de homens que meus filhos se tornarão. Os educo para que enxerguem as mulheres como iguais e as tratem com respeito.”

Ativista pró-aborto diz que o debate será quente em 2017

A antropóloga alagoana Debora Diniz, 47 anos quer ver o aborto no centro da pauta do governo e da justiça. Uma das mais reconhecidas articuladoras do tema no país, ela se uniu ao PSOL para protocolar a primeira ação que pede a legalização para qualquer gestação de até 12 semanas. A medida contou com a assessoria técnica do instituto de bioética Anis, fundado por Debora em 2000.

Pode ser que demore anos até que a causa seja julgada pelo STF. Mas a pesquisadora é otimista e cita a descriminalização do aborto no caso de fetos anencéfalos, permitido em todo país desde 2012. A discussão teve início no começo dos anos 2000 e a estratégia jurídica e de comunicação também foi liderada por Débora. “Foram anos de espera até aprovarem o aborto de anencéfalos. Agora, vamos reagendar de novo o tema nacionalmente.”

Confiante, a antropóloga acredita que o Brasil está preparado para o enfrentamento desta questão e acha que a presença de uma mulher na presidência do STF, a ministra Cármen Lúcia, pode ser um grande trunfo. “Ela tem uma delicada sensibilidade em relação ao tema do aborto e ao direito das mulheres em geral. O senso de justiça dela me tranquiliza.”

Há 30 anos, minha voz era solitária no debate pela descriminalização do aborto. Recebia ameaças

Foi no começo dos anos 90 que Débora se envolveu com o tema que ainda é um dos maiores tabus femininos. E essa militância já lhe rendeu diversos problemas. “De vez em quando, uns tolos ainda mandam mensagens impensadas. Já tive até que fazer queixas na polícia.”

Ela diz que nunca passou pelo sofrimento de ter que fazer um aborto e costuma dizer que se os homens pudessem engravidar, a interrupção já seria legalizada no Brasil. “Se eles também cuidassem das crianças, certamente reconheceriam suas próprias necessidades de vida como prioridade.”

Aos 94 anos, ela é referência de estilo e elegância

Christine Yufon marcou época na moda nacional. Chinesa naturalizada brasileira, dona de traços exóticos, esguia e alta, era a modelo queridinha de costureiros como Maria Augusta Teixeira e Denner Pamplona de Abreu, nos anos 50. Um tempo em que os desfiles aconteciam em maisons para mulheres da alta sociedade. Hoje, aos 94 anos, ela segue como um ícone de estilo, derrubando o tabu da idade que estigmatiza as mulheres.

Em seu ateliê, em Higienópolis, cria acessórios e roupas que parecem instalações artísticas e dá aulas de postura de etiqueta. “Nunca fui bonita. Acho que sou até meio estranha…”, diz, contrariando o título do livro que lançou em 1998, “Toda Mulher Pode Ser Bonita”, no qual dá dicas como a organização dos talheres para um jantar clássico. “Procuro ser alto-astral. Olho para os outros, tento servir e ajudar”, explica Christine ao falar sobre sua vitalidade.

A velhice não é algo ruim. Agradeço por todas as minhas recordações

Suas criações para a moda, chamadas pelos especialistas de “esculturas de vestir”, não dataram. Christine continua vanguardista e colabora com estilistas da nova geração, como Dudu Bertholini. “Sou satisfeita com tudo o que faço porque meu trabalho está ligado à emoção e à humanidade”, define.

Viúva do engenheiro francês Georges Collet, diz que ele foi seu parceiro de recomeço. O casal deixou a China rumo ao Brasil quando Mao Tsé-tung chegou ao poder, em 1949. A alegria dos três bisnetos, conta, é sua fonte de aprendizado mais recente. “Tenho tudo que sempre quis e me sinto imensamente feliz e realizada.”

Sushi-chef desmente mito e manda no balcão

Uma tradição milenar da gastronomia oriental diz que mulheres têm mãos quentes e, por isso, não podem manusear o peixe sob o risco de apodrecê-lo. A crença é levada tão a sério no Japão, que é praticamente nula a presença feminina nas cozinhas. A paulistana Alice Celidônio, 27 anos, se diverte com o mito. Ela é chef do sushibar do Un, um dos mais badalados restaurantes dos Jardins, bairro nobre de São Paulo.

“É difícil ver as mulheres à frente de qualquer atividade no Japão. A gastronomia é só mais um desses lugares”, opina sushiwoman, um caso raro de especialista mulher no corte e manuseio dos peixes no Brasil. Alice começou a se interessar pelos sushis e sashimis em seu primeiro emprego, como garçonete de um “japa” em Florianópolis (SC), onde cresceu. Após um ano servindo as mesas, pediu ao dono do lugar que lhe desse uma oportunidade no balcão. “Antes, tive que fazer um curso na cozinha durante os dias de Carnaval, às 7h”, recorda. “Foi um teste do dono para ver se eu estava determinada”.

Quero deixar um legado. Sou uma mulher que se impôs em uma gastronomia milenar

“Testes” assim, vez ou outra, reaparecem na vida de Alice, mesmo após 10 anos de experiência. O mais recente aconteceu durante uma viagem ao Japão. Em Kappabashi, rua em Tóquio conhecida pela venda de facas, a sushiwoman sonhava em adquirir uma yanaghi, um momento simbólico para os chefs orientais. “O vendedor se deparou com uma moça, ainda por cima, brasileira, e claro, tentou empurrar peças ruins, com o fio desalinhado…”, explica. “Ele só me levou a sério quando notou a forma com que eu manuseava a faca. Percebeu que eu não estava ali como curiosa”.

Na peça escolhida, no lugar de seu nome, Alice mandou gravar três símbolos que significam “amor”, “jasmim” e “sagrado”. “Mas quando se lê, a pronúncia é ‘Arice’. É a forma como os japoneses dizem meu nome”, explica. “Não ficou do jeito que manda a tradição. Mas valeu a intenção”.
“Arice” gosta mesmo é de quebrar regras.

 

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