Quase da família, de Sinara Gumieri.
Publicado originalmente por Justificando, em 7 de junho de 2016.
No Country Clube do Rio de Janeiro, babás não podem frequentar o banheiro feminino. Se não sabem ou esquecem disso, uma placa na porta avisa que elas devem usar o sanitário reservado às crianças. Se ainda assim estiverem no banheiro das madames, podem ser convidadas a sair, como aconteceu com a babá que dava banho em três crianças filhas de um sócio do clube. Acionado a partir da divulgação do caso por um jornal, o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro investigará práticas discriminatórias no clube.
Não é preciso muito conhecimento sociológico sobre a matriz racial da elite nacional ou do trabalho doméstico para entender que a regra do Country Clube faz do banheiro feminino um espaço para mulheres brancas e ricas. É um clube de abastados, em pleno ano de 2016, com práticas de uma casa grande no século XVIII, das leis segregacionistas Jim Crow no sul dos Estados Unidos, das décadas de apartheid sul-africano. Mas as justificativas para a regra não incluem “porque somos racistas”, porque a conveniente compreensão de racismo no Brasil insiste que só há discriminação se houver intenção de excluir e prejudicar. E quem admitiria intenção tão sórdida contra jovens negras com quem não se compartilha mesa de refeição, mas que são “quase da família”? As que são “muito bem tratadas”, só não tem direitos trabalhistas garantidos? Isso não deve ser coisa que passe pela cabeça da nata carioca, não é?
A conveniente compreensão de racismo no Brasil insiste que só há discriminação se houver intenção de excluir e prejudicar.
O que justifica banheiro segregado, então? A administração do clube teria dito que os banheiros são exclusivos para sócias, “que deixam lá seus pertences”. Uma sócia de nome conhecido explicou que ali “há regras. Existem sócios mais velhos que não querem ser incomodados por crianças no banheiro”. Outra sócia, que protegeu seu preconceito com anonimato, declarou que “as babás não necessariamente são pessoas extremamente educadas. Infelizmente, nem todas as classes têm acesso à mesma educação. Elas não necessariamente vão puxar a descarga ou deixar o banheiro limpo”.
Segundo o Country Clube do Rio, babás são ameaças patrimoniais e sanitárias à elite. São também trabalhadoras com a missão de criar seus filhos o mais longe possível de seus olhos. A aparente contradição é característica do trabalho doméstico racializado no Brasil, em que a elite subalterniza trabalhadoras de quem depende para ter chão limpo, crianças banhadas e comida preparada. A subalternização racial tem função: garantir que certos grupos da população se atrevam menos a ocupar espaços de poder. O banheiro do clube racista, assim como os elevadores de serviço e as dependências de empregada nos apartamentos burgueses, é a arquitetura de um projeto inacabado de abolição da escravidão.
Sinara Gumieri é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.