A Portaria 2.282/2020, expedida pelo Ministério da Saúde, cria barreiras para o acesso aos serviços de aborto legal e obriga médicos a participarem de processo de investigação criminal
A Portaria, que já é alvo de Projeto de Decreto Legislativo para sustar seus efeitos, agora também será questionada junto ao STF. Uma coalizão formada pelo PT, PSOL, PCdoB, PDT e PSB protocolou Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 737) segundo a alegação de que a portaria desvirtua a ação da equipe de saúde ao colocar a obrigatoriedade da notificação às autoridades policiais.
A partir dessa lógica, o primeiro contato das mulheres em busca de um serviço de aborto legal deixa de ser com o acolhimento e cuidado que a equipe de saúde deveria oferecer e passa a ser com a investigação criminal. A mudança não só desvirtua a atuação dos profissionais de saúde ao colocá-los em um papel de investigadores, como também pode afastar as mulheres dos serviços caso ainda não estejam prontas para realizar a denúncia.
Segundo a Ação, o Ministério da Saúde não tem competência para criar, por meio de Portaria, restrições que não estão previstas em lei para o acesso aos serviços de aborto legal. Outro ponto levantado na peça é o de que o Ministério não poderia impor a criação de novas funções à equipe médica, como a participação dentro de um processo de investigação criminal. O ato administrativo coloca em risco o acesso das mulheres e meninas a um direito previsto em lei ao tornar obrigatório que a equipe médica viole o direito ao sigilo das pacientes para notificar as autoridades policiais.
Além disso, a Portaria ainda prevê dois outros procedimentos que seriam incluídos no processo de interrupção legal da gestação. A exibição de ultrassom do feto para a mulher, procedimento criado para intimidar ou mesmo torturar psicologicamente mulheres que estão em busca de um cuidado de saúde necessário por uma violência anterior; e a leitura de uma lista de riscos decorrentes do procedimento de aborto legal sem que estejam acompanhados da prevalência (probabilidade associada a cada risco citado) nem de uma lista de riscos decorrentes da não-realização do procedimento, especialmente os riscos de vida das meninas nos casos de gestação precoce ou os riscos à saúde mental de mulheres forçadas a seguir adiante com uma gestação fruto de violência.
A portaria cria novas barreiras para que mulheres possam acessar um direito que já é tão comprometido atualmente, visto que muitas das mulheres decidem não fazer a denúncia por medo de sofrerem retaliação dos agressores. Segundo o relatório do Disque Direitos Humanos de 2019, 73% dos casos de violência sexual registrados aconteceram na casa da vítima ou do agressor, o que implica em uma relação próxima entre ambos. Tornar a denúncia condição para que meninas e mulheres acessem o serviço de aborto legal é fazer com que muitas delas sejam obrigadas a desistir do acesso ao cuidado e à saúde.