Houve um tempo em que acreditávamos nos manicômios como lugares bons para tratar os loucos. Você pode dar o nome que preferir — pode ser hospício, sanatório ou hospital de tratamento psiquiátrico. Só não vale clínica de repouso ou casa de saúde. Eu gosto de manicômio, uma palavra de horror. Até me dói pronunciá-la: o dicionário diz “hospital para o tratamento de psicopatas”. Nos manicômios, trancavam-se os loucos, acorrentavam-se os mais agitados, não havia preocupação com as formas de cuidar ou exibir os corpos. Os loucos andavam nus, sujos como cachorros abandonados pelas ruas. Comiam o que lhes davam, dormiam onde caíssem.
Muito se comparou os manicômios aos campos de concentração. Essa é uma alegoria que nos atemoriza pelo exagero, mas aqui ela é justa. Assim como nos campos nazistas, os loucos dos manicômios não podiam ir e vir, eram esquecidos, viviam como os quase mortos descritos por Primo Levi em “É isto um homem?” Quando vejo imagens do Hospital de Barbacena ou da Clínica Planalto, a única da capital do país, desativada há pouco mais de década, me lembro, sim, dos campos concentracionários. E repito a surpresa, porém de jeito um pouco diferente: “o que é isso que fizeram?”
Já sabemos o que um manicômio faz aos loucos. Não há tratamento, não há cuidado, não há cura. Há abandono, esquecimento e maus-tratos. Mente quem diz que houve avanço do tempo de Pinel para cá, que não há mais isso de corrente ou nudez. Hoje, além das contenções físicas, há os remédios, a impregnação, o controle silencioso do jaleco branco que acredita no diagnóstico da loucura pelo medicamento oferecido pela indústria farmacêutica. Por isso, mente mais ainda quem diz ser o manicômio uma possibilidade de uma nova psiquiatria, agora científica.
Bubu é um poeta. Vive há quase duas décadas entre idas e vindas no manicômio judiciário de Salvador. Ele diz ser a psiquiatria “a mais atrasada das ciências”. Como desconheço a escala de julgamento do poeta, faço citação como provocação para aqueles que defendem mudanças na política de saúde mental pela volta dos manicômios. O recém-empossado coordenador da área técnica de saúde mental do Ministério da Saúde, Valencius W. Duarte Filho, foi diretor de manicômio de horror, a Casa de Saúde Dr. Eiras. Roberto Tykanori, ex-coordenador da pasta, lembra, “este lugar era realmente um dos piores que eu já vi. Havia uma pessoa que estava há 15 anos trancada, sem sair por mais de 15 anos. Ela era mantida como um verdadeiro animal, como numa jaula em que a comida passava por baixo da porta, e ninguém se importava com isso”. Eu não acredito em manicômios, e mais: quero viver em um tempo em que os manicômios sejam uma vergonha do passado. Por isso, repito: por uma sociedade livre dos manicômios.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.
Autor: Debora Diniz