Por Marcelle Souza
Publicado originalmente no site ECOA do Uol
Quando a ministra Rosa Weber chamou uma audiência pública para discutir a APDF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) 442 no STF (Supremo Tribunal Federal), em agosto de 2018, representantes da saúde, do direito e da sociedade civil apresentaram seus argumentos contra e favor da legalização do aborto.
Entre os favoráveis à mudança, as justificativas são que a lei em vigor hoje, que desde 1940 criminaliza a prática no Brasil, penaliza e expõe de forma desigual as mulheres brasileiras a riscos desnecessários. A legalização seria, sob esse ponto de vista, uma demanda de direitos, mas também de saúde coletiva. Quase uma em cada cinco mulheres já realizou pelo menos um aborto até os 40 anos no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto de 2016.
Segundo a enfermeira e epidemiologista Emanuelle Goes, pesquisadora associada na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e pós-doutoranda na Fiocruz-Bahia, a legalização do aborto é também uma questão de justiça social, já que as negras e pobres são as mais afetadas pela lei em vigor. “As mulheres têm direito à autonomia reprodutiva e o aborto criminalizado viola esse direito. É uma questão de justiça social porque as mulheres sofrem as consequências de procedimentos clandestinos e inseguros, com a morte”.
A seguir, Ecoa explica o que diz a lei no Brasil, quem são as mulheres que abortam e quais são as criminalizadas, como o procedimento pode ser feito de forma segura, como são as leis em outros países e o que sabemos das experiências onde ele já foi descriminalizado.
O que diz a lei no Brasil?
No país, o Código Penal trata, desde 1940, do aborto nos artigos 124 a 128, e a pena para a mulher que o praticar é de um a três anos de detenção. O procedimento só não é punido em caso de estupro ou risco de morte para a gestante. Em 2012, o STF decidiu que também era permitido em caso de anencefalia fetal.
No campo da saúde, o tema é tratado nos textos “Atenção Humanizada ao Abortamento”, primeira edição de 2005 e “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, em vigor desde 1999.
As normas definem, por exemplo, um atendimento multidisciplinar em caso de estupro, apontam documentos e procedimentos que a equipe deve adotar e afirmam que, nesses casos, não pode ser exigido nem boletim de ocorrência nem decisão judicial das vítimas.
Apesar disso, a pesquisa “Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional”, realizada por Alberto Pereira Madeiro e Debora Diniz, mostrou que, além de poucos serviços desse tipo no país, muitos exigem documentos desnecessários e retardam o atendimento das pessoas que desejam interromper uma gestação nas situações previstas em lei.
Quem aborta no Brasil?
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, esse é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões no Brasil. Os resultados mostram que quase uma em cada cinco mulheres já realizou pelo menos um aborto até os 40 anos.
Apesar do elevado número de casos de aborto, apenas algumas mulheres são denunciadas criminalmente pela prática. Isso é o que mostrou um levantamento realizado pela Defensoria Pública de São Paulo, que identificou 30 mulheres que haviam sido processadas por aborto no Estado. Segundo o Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), órgão da Defensoria que realizou o estudo, as acusadas tinham em média renda mensal entre R$ 600 e R$ 900, apenas uma tinha cursado o ensino superior e mais da metade já tinha filhos.
As defensoras, que impetraram pedidos de habeas corpus para liberar as mulheres, descobriram que quase todas não tiveram advogados constituídos durante o processo.
“O que se percebe é que desde o início [dos processos] as mulheres acusadas de prática de aborto são vítimas de violações a direitos à intimidade, privacidade, devido processo legal e efetivo acesso à justiça”, dizem as defensoras no dossiê divulgado sobre os casos. “Apenas a descriminalização da interrupção voluntária da gestação é medida imperiosa para fazer valer os direitos humanos e fundamentais das mulheres no Brasil”, afirmam no documento.
O Nudem da Defensoria de SP é um dos grupos que pediu a legalização da prática na audiência da APDF 442 no STF.
Aborto é um procedimento seguro?
A OMS (Organização Mundial da Saúde) considera o aborto um procedimento seguro, desde que realizado dentro dos protocolos estabelecidos e por pessoas capacitadas. De acordo com especialistas ouvidas por Ecoa, a criminalização é o que faz do aborto um procedimento inseguro.
No Brasil, uma das vítimas foi Jandira Magdalena, 27, que tentou interromper uma gestação em uma clínica clandestina no Rio de Janeiro em 2014. Seu corpo foi encontrado carbonizado dias depois de seu desaparecimento, sem os dentes e sem impressões digitais. Ela havia morrido durante o procedimento e os responsáveis pela clínica tentaram acabar com vestígios do crime.
Em agosto de 2018, durante a audiência da ADPF 442 no STF, Maria de Fátima Marinho de Souza, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde disse que os procedimentos inseguros levam à hospitalização de mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade. Ainda de acordo com a diretora, o aborto inseguro causa uma morte a cada 2 dias no Brasil.
“O aborto não é um procedimento perigoso. É perigoso quando é feito de forma insegura, com métodos que não são os recomendados pela OMS, quando se usam doses inadequadas ou medicamentos incorretos, sem a informação adequada, em contextos de perseguição criminal”, diz Mariana Romero, médica militante pela legalização do aborto na Argentina e uma das coordenadoras do REDAAS (Rede de Acceso ao Aborto Seguro).
Uma pesquisa publicada em 2012 no periódico do colégio americano de ginecologia e obstetrícia mostrou que o risco de morte por aborto é quase 14 vezes menor do que durante um parto. Feito em condições adequadas, ele é tão seguro que, em países em que o procedimento é permitido, como na Inglaterra, o aborto nas primeiras semanas de gestação pode ser realizado em casa. Isso acontece depois da realização de exames prévios e da mulher receber o medicamento com a informação correta sobre como usá-lo.
Além disso, os remédios utilizados para a interrupção da gestação constam na lista de medicamentos essenciais da OMS. No Brasil, no entanto, o Misoprostol, popularmente conhecido pelo nome comercial Cytotec, tem circulação proibida fora do ambiente hospitalar.
Sem acesso a meios seguros e informação correta na rede púbica, muitas mulheres ficam expostas ao mercado ilegal, sem garantia de qualidade e procedência do medicamento, e a procedimentos invasivos, aumentando os riscos de infecção, hemorragia e perfurações de órgãos. Essas ocorrências afetam de modo distinto pessoas negras e de classes baixas no país.
“As mulheres negras são as que mais realizam abortos inseguros e que morrem por consequência disso. Elas também têm menos acesso aos serviços de aborto legal e sofrem barreiras institucionais quando procuram o serviço para finalizar uma interrupção provocada ou [aborto] espontâneo”, diz Emanuelle Goes, pesquisadora da UFBA. Isso acontece, explica a epidemiologista, porque essas mulheres experimentam uma discriminação que associa o estigma do aborto ao racismo institucional.
Quanto custa a criminalização do aborto?
Se a criminalização não evita que as mulheres abortem, e, ao contrário, acentua as desigualdades e a insegurança, o preço por isso é pago por todos os brasileiros. E a conta é alta.
Só no primeiro semestre de 2020, por exemplo, o SUS (Sistema Único de Saúde) gastou quase 30 vezes mais com procedimentos pós-abortos incompletos (sejam eles espontâneos ou provocados) do que com interrupções previstas em lei, R$ 14,29 milhões contra R$ 454 mil. No período, foram 1.024 abortos legais contra 80.948 curetagens e aspirações.
Esses números devem ser ainda maiores, já que não abrangem o volume e os custos com cirurgias ou tratamentos para infecções resultantes de abortos inseguros. Também não mostram os prejuízos com a perda de mulheres que morreram por procedimentos malsucedidos.
Seria melhor prevenir essas gestações indesejadas?
Prevenção é importante, e muitas vezes caminha lado a lado com a defesa da legalização do aborto, mas é preciso considerar que nem todas as pessoas têm acesso a esses serviços de contracepção. Além disso, algumas interações com outros medicamentos, como antibióticos, reduzem a eficácia dos métodos; nem todo mundo sabe usá-los de forma correta e, em caso de estupro, não se pode negociar a anticoncepção.
Outro ponto é que, mesmo que usados perfeitamente, todos os métodos disponíveis no mercado podem falhar. Quem nunca ouviu a frase “engravidei quando tomava pílula” ou “quando percebi, a camisinha tinha estourado”, não é mesmo? Isso pode ser explicado, entre outros motivos, pela taxa de falha dos métodos contraceptivos, que é a porcentagem de mulheres que engravidam enquanto utilizavam algum deles.
Segundo o Ministério da Saúde, o preservativo, por exemplo, tem taxa de falha de 3% a 14%, a pílula hormonal combinada, de 0,1% a 6%, enquanto o DIU (dispositivo intra-uterino), de 0,6% a 0,8%. Apesar de menor que as anteriores, até procedimentos considerados definitivos podem falhar, como a vasectomia (0,1%) e a laqueadura (0,5%).
Em geral, países onde o aborto foi legalizado o associam a programas de orientação sobre métodos contraceptivos e educação sexual. Assim é feito, por exemplo, no Uruguai, onde uma lei sobre o tema instituiu, desde 2008, uma rede de serviços de saúde sexual e reprodutiva. “É muito importante entender que o Estado deve dar o subsídio para que você só volte se quiser de fato ter uma gestação”, diz a cientista social Juliana Wahl, que em sua pesquisa de mestrado na USP (Universidade de São Paulo) investiga a legalização do aborto no país vizinho.
Segundo o Ministério de Saúde Pública do Uruguai, 85% das mulheres que acessaram o serviço pós-aborto escolheram algum método anticoncepcional como DIU, laqueadura tubária, vasectomia, preservativos masculinos e femininos, implantes anticoncepcionais subdérmicos e pílulas anticoncepcionais. Assim como no Brasil, esses métodos são oferecidos de forma gratuita no sistema público de saúde uruguaio.
Por lá, a defesa da legalização do aborto também envolveu a discussão sobre educação sexual nas escolas.
Como são as leis em outros países?
A maioria dos países da Europa legalizou o aborto há algumas décadas, como Inglaterra (1969), França (1975), Itália (1978) e Portugal (2007). A Irlanda do Norte passou a permiti-lo só em outubro de 2019. Na contramão desses, a Polônia adotou normas mais restritivas no ano passado contra quem realiza o procedimento.
Nos Estados Unidos, o tema foi julgado em 1973 pela Suprema Corte no emblemático caso Roe x Wade, que acabou por legalizar a prática em todo o país. O aborto é legal ainda em países como Canadá (1969), Nova Zelândia (1977), Tunísia (1973), África do Sul (1997) e Moçambique (2014).
Na América Latina, o procedimento é legalizado em Cuba e no Uruguai. Na quarta-feira (30), a Argentina legalizou o aborto até a 14a semana de gestação em votação no Senado. No restante da região é considerado um crime, com pequenas exceções, como Brasil e Chile. No México, onde o tema é tratado nos Códigos Penais de cada Estado, o aborto é permitido na Cidade do México e em Oaxaca.
Em países como Equador e Paraguai, é proibido interromper uma gestação mesmo em caso de estupro. Em El Salvador, por sua vez, as penas podem chegar a 30 anos de prisão para a pessoa que o realize. Entre as condenadas, há relatos de mulheres que tiveram um aborto espontâneo e acabaram na cadeia.
“Com a criminalização, as mulheres da América Latina perdem em segurança, em estabelecer um contato fluido e confiável com sistema de saúde, justamente uma das coisas mais poderosas da legalização, assim como a capacidade para exercer a autonomia e a decisão, que me parece que é um dos bens mais preciosos na vida de qualquer pessoa”, afirma a médica Mariana Romero.
Legalizar aumenta o número de abortos?
Em Portugal, foram realizados 18.607 procedimentos em 2008, primeiro ano de vigência da lei que permite a interrupção até a 10ª semana de gestação. Quatro anos depois, o país começou a registrar uma queda no número de intervenções, chegando a 14.928 procedimentos em 2018.
No Uruguai, nos primeiros meses após a legalização (entre dezembro de 2012 e maio de 2013) nenhuma morte por aborto foi registrada. O país associa o sistema de aborto legal a programas de educação sexual e reprodutiva e de acesso a métodos contraceptivos.
“A legalidade deu outra dimensão para a prática, o que quer dizer que as mulheres se sentem cada vez mais seguras de recorrer a um atendimento institucionalizado em vez de métodos inseguros, a traficantes de Misoprostol”, afirma Juliana Wahl. “O discurso que ganhou com a aprovação da legalização do aborto no Uruguai foi: se você é antiaborto, precisa descriminalizar e regular essa prática”, diz a pesquisadora da USP.