Por Debora Diniz e Giselle Carino
Publicado originalmente no jornal El País
A primeira vítima fatal de coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, trabalhadora doméstica. Foi infectada “pela patroa” que não a informou que estava doente. Empregada e patroa foram assim descritas pelas notícias, sem nome, só os espaços de vida dos privilégios resumiam suas existências: empregada dormia no emprego, patroa viajou para Itália de onde retornou doente. Empregada morreu em um hospital público, foi enterrada em cemitério vizinho à casa de rua sem asfalto. A patroa mora no metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro. Nem morta, a empregada teve o privilégio de ser nomeada para ser humanizada no luto, como mostrou Djamila Ribeiro.
Empregada e patroa são as alegorias de como uma pandemia se cruza com as fronteiras dos privilégios de gênero, classe e raça. Nosso feminismo latino, embranquecido pela colonialidade do poder, é insuficiente para responder à crueldade da epidemia entre o mundo das mulheres: nós, mulheres da elite trabalhadora e educacional, lamentamos a solidão do trabalho remoto, a difícil tripla jornada de trabalho com filhos na casa, o desaprumo da mesa de jantar como espaço de trabalho. As mulheres concretas do mundo, aquelas que todos os dias continuam a se mover pelas cidades em transportes públicos apinhados, já vivem essa cruel realidade há tempos. A diferença é que nosso sucesso no trabalho dependia de nosso posto como patroas na vida doméstica ou nas creches.
Os dados são frágeis, pois as mulheres concretas do trabalho doméstico vivem na informalidade. Elas são faxineiras, babás, empregadas domésticas, cuidadoras e o uso do feminino não é cacoete feminista: 93% das trabalhadoras domésticas da América Latina e Caribe são mulheres. Se somarmos a esse contingente, o universo das manicures e cabelereiras ou das educadoras e profissionais em saúde, estamos falando de para onde o feminismo de 99% das mulheres precisa olhar para entender os efeitos dessa epidemia nas mulheres nos privilégios de classe. O emprego doméstico é uma das áreas com maior nível de trabalho informal nas Américas: segundo a Organização Internacional do Trabalho, em 2013, 8 em 10 trabalhadoras domésticas estavam na informalidade.
Estar na informalidade é estar sem salário ou arriscar-se a adoecer para cuidar das elites adoecidas. Estar na informalidade é adoecer, e viver à espera da caridade das elites. Mesmo para as trabalhadoras domésticas formais, apenas 1 em cada 4 possui cobertura de previdência social na América Latina e Caribe. Há países onde o quadro é ainda mais desesperador: Bolívia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, México, Paraguai e Peru, nove em cada dez trabalhadoras domésticas não têm proteção social alguma.
Essas são mulheres trabalhadoras inexistentes para o Estado de bem-estar social, adoecidas, empobrecidas ou famintas viverão a perversidade das políticas de distanciamento social como arriscada sentença de morte. Recolhidas à casa como mandam as políticas abstratas de proteção à saúde, correm maiores riscos de violência, como mostram os dados da China, onde triplicaram os registros de violência doméstica em fevereiro de 2020 comparado à 2019, e não cuidam de si ou dos filhos. Fenômeno semelhante ocorre nos Estados Unidos, onde mulheres enfrentam barreiras para buscar refúgio em casas abrigo pelo risco de contágio. São mulheres que, se desafiam as regras de reclusão doméstica e se submetem à servidão do trabalho, correm o risco de adoecer como cuidadoras de quem ignoram seus direitos, sua vida ou seu nome. É hora de nosso feminismo reconhecer e abdicar dos privilégios da patroa para poder olhar e cuidar do impacto da pandemia na vida das mulheres concretas.