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Publicado originalmente por Justificando, em 9 de agosto de 2016.
A Anis – Instituto de Bioética falou sobre a epidemia do vírus Zika pela primeira vez em dezembro de 2015. Na época, diante de evidências da associação entre a infecção pelo vírus durante a gravidez e má-formações e desordens neurológicas em fetos, o então Ministro da Saúde, Marcelo Castro, flertava com ideias de dizer às mulheres que evitassem engravidar enquanto a epidemia perdurasse. Nos somamos a outras vozes feministas para lembrar que não há cuidado em saúde pública nem prevenção se não houver educação sexual integral e acesso amplo a serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo contraceptivos e aborto seguro e legal. Enquanto o governo brasileiro acalmava seus discursos controlistas, países da vizinhança latino-americana adotavam-nos: El Salvador e Colômbia foram alguns dos que pediram às mulheres que adiassem a gestação.
Em fevereiro de 2016, fomos chamadas a ouvir sobre a epidemia do zika. Nos tornamos escutadeiras de mulheres de Campina Grande, Paraíba, cujas vidas foram afetadas por uma nova síndrome que parecia ter surgido de um velho conhecido de famílias nordestinas, o mosquito Aedes aegypti. No documentário Zika, dirigido por Debora Diniz, soubemos que Dra. Adriana Melo foi quem, de tanto prestar atenção a suas pacientes, demonstrou pela primeira vez que o vírus passava das mulheres aos fetos no útero. Ouvimos o encontro de Amanda com a angústia das incertezas nos exames pré-natais. Escutamos Marina soluçar com a doença que comprometia sua própria saúde, além da do feto. Sorrimos com Alessandra, que se desdobrava em amor pelo bebê Samuel, que nasceu com microcefalia. Ouvimos a luta na voz de Ana Angélica, reivindicando direitos para que a filha Ana Hávilla não precisasse perder sessões de estimulação precoce por falta de transporte. Nos emocionamos com Géssica, que se despediu do filho natimorto com um gesto de generosidade com outras mulheres em busca de respostas.
Em maio, já quase não se ouvia falar em zika. A crise política e econômica do país abafou as pelejas de famílias nordestinas, silenciadas desde antes pela desigualdade social nacional. A Organização Mundial de Saúde emitiu recomendações para turistas e atletas olímpicos que viessem ao Brasil em tempos de epidemia: falou em usar repelentes e roupas de mangas compridas, em preferir lugares com ar-condicionado, em usar camisinha ou praticar abstinência diante da possibilidade comprovada de transmissão sexual do zika. A OMS não falou com as mulheres e famílias afetadas, mas falou delas: lembrou ainda aos turistas de evitar circular por áreas sem água encanada ou saneamento básico, onde vivem as famílias mais afetadas. Deixou claro, assim, que os Jogos Olímpicos não eram para elas, talvez apesar delas.
Turistas e atletas vieram. Nesse começo de agosto, circulam pelo Rio de Janeiro entre jogos e festas, e até fazem graça da ameaça do zika que não veem em lugar nenhum. Em vídeo, o casal Joselito e Maria Carolina pede escuta para matar a charada: não se vê nem se fala em zika nos Jogos Olímpicos porque é preciso saber olhar – uma visita à Esperança, na Paraíba, e poderão conhecer a filha caçula, Maria Gabriela, uma das mais de 110 crianças com a síndrome congênita do zika atualmente atendidas nos serviços de saúde de Campina Grande.
Nove meses depois de falar em zika pela primeira vez, sabemos que há mais de 8.700 casos notificados para a microcefalia e/ou outras alterações do sistema nervoso central associadas ao zika. Nos mais de 1.700 casos já confirmados, mães se transformam em cientistas da casa, atentas às necessidades de bebês afetados pela síndrome congênita que a medicina ainda não sabe prever. Quando buscam proteção social na forma do Benefício de Prestação Continuada (BPC), enfrentam filas, desinformação, e leis que restringem direitos em vez de expandi-los.
Nos próximos dias, a Anis vai falar ainda mais sobre zika. Vai seguir escutando e vai se somar a vozes de mulheres e famílias pela convicção de que, mesmo entre a barulheira de megaeventos esportivos e escândalos de corrupção, o Brasil tem dever de ouvir.
Sinara Gumieri é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica