Eles são inseguros, mas têm orgulho de ser machos e muitos. Descrevem-se como representantes do movimento “orgulho hétero”, reclamam dia nacional de combate à heterofobia, apresentam panteão próprio de heróis e representantes políticos. Desconheço mulheres participantes do “orgulho hétero”, talvez porque a veadagem incomode mais aos homens machos que a qualquer outra forma de existência no gênero. Mas a ideia de gritar orgulho por formas de viver é uma expressão de grupos oprimidos e segregados — assim foi com o “orgulho gay” ou o “orgulho surdo”. Se me inquietava saber as razões pelo sentimento de exclusão, o bando de machos inseguros acabou de conquistar o motivo: a página do grupo foi considerada inadequada para o Facebook.
Não me interessa escarafunchar o ocorrido. Queria pensar a tese que navegou por entre a controvérsia: os machos tinham fala livre ou odiosa? Se falar e odiar são apenas variações de um direito único e fundamental — liberdade de expressão, diríamos —, ou se há fronteiras entre as duas formas de posicionar-se diante de estranhos morais. Sustentarei que há fronteiras entre liberdade de expressão e discurso do ódio, e que conhecê-las e respeitá-las é importante para a democracia civilizada. Parto de uma definição simples de liberdade de expressão: poder falar, falar muito, só não sei se qualquer coisa. Segundo os defensores da liberdade plena, qualquer coisa poderia ser dita, não haveria limites no discurso, pois julgamentos sobre o dito seria já uma forma de censura ao pensamento e à falação.
Há, no entanto, várias camadas nessa tese. A primeira delas é que a liberdade de expressão garante o direito de falar. Meu estranhamento é pelo deslizamento do falar para o falar qualquer coisa. Até pode ser, em um sentido hipotético, mas em uma perspectiva consequencialista não é tão simples assim. Podemos falar, como fazem os machos inseguros, novidades do léxico (heterofobia), mas são as consequências do dito o que provoca a conversa sobre as fronteiras entre a falação legítima e a falação odiosa.
A fronteira entre falar e odiar existe e não deve se esconder pelo relativismo do discurso — os defensores dos machos poderiam dizer que apenas resistem a um tsunami de veadagem. A imoralidade das crenças gays, continuariam os machos inseguros, seria uma provocação ao ódio — ou pior: este texto seria já falação odiosa. Será mesmo assim, discordar é sempre odiar? Minha tese é que não, a desavença é parte da democracia, o ódio é um desqualificador da liberdade de expressão. Discordar é o que move a argumentação, o que garante a pluralidade de pensamentos e de formas de viver. Odiar é uma forma de restringir liberdades, de impor medo, perseguição ou mesmo violência à convivência.
O caso dos machos inseguros é interessante para pensarmos as fronteiras entre liberdade de expressão e discurso abusivo. Se há terras estrangeiras em que a liberdade de expressão é passe livre para dizer qualquer coisa, a qualquer pessoa e em qualquer situação, entre nós, o palavrório é regulado. Meu ponto é que a regulação não é só um gesto policial de vigilância às boas regras de civilidade ou, melhor dito, não é apenas uma questão jurídica de convivência pacífica, mas um marco ético para a boa vida. O encontro da boa vida pode se dar na rua, onde sentimos o cheiro de quem nos desagrada; ou nas mídias sociais, onde lemos ou ouvimos o que não suportamos.
Os machos podem ser machos, podem provocar os valores e sentimentos da masculinidade superior: devem ser livres para exibir seus músculos e palavreado desconhecido pelos dicionários. Devem, inclusive, ter espaços para convivência segregada — um clube dos machos que se reconhecem. O que eles não podem é ultrapassar a fronteira da mútua admiração para o ódio contra aqueles que não reconhecem nos músculos, na voz grossa ou na brutalidade os valores da boa vida. Ao contrário do que dizem, a fronteira não é tênue, tampouco difícil de ser traçada — uma coisa é o orgulho de si, outra coisa é o desprezo pelo outro.
É assim que entendo a fronteira entre liberdade de expressão e discurso abusivo. Não é tudo que vale no campo das crenças sobre os outros, das opiniões que resultam em restrições de direito, ou de valores que pressupõem desigualdades. Ser um macho inseguro é só uma das muitas formas de expressão das masculinidades — felizmente, nem a melhor ou a única. Os machos orgulhosos devem ter pleno espaço para a expressão de seus valores; mas os machos muito inseguros devem ser apresentados às boas regras de convivência. Nem que seja os proibindo de falar.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga a página do Facebook.
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Autor: Debora Diniz